
Em qualquer lugar do mundo e em diferentes épocas, o hospital é um dos poucos, senão o único espaço que une sentimentos extremos: a euforia dos nascimentos e o sofrimento das despedidas. Choros de alegria e de desalento. Conquistas e derrotas. Início e fim.
Mas são também nos corredores de emergências, consultórios e UTIs que nascem laços de amizade e de amor. Alguns, atados para sempre. É o caso da técnica de enfermagem Vera Lúcia Alves, 57 anos, e de Letícia Alves, 18, que se conheceram no décimo andar do Hospital de Base de Brasília, na ala da oncologia.
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Foi lá que, em meados de 2018, Vera começou a atender a paciente Nazaré dos Santos, à época com 37 anos. A auxiliar de limpeza, mãe de Letícia, tratava havia um ano um grave câncer de mama e, entre altos e baixos, necessitava de internação no hospital. "Ela era conhecida por ser ranzinza, mas, aos poucos, se acostumou com minha presença. Conquistei sua confiança e me adaptei ao seu jeito", conta Vera.
A amizade extrapolou o ambiente profissional. Mesmo quando recebia alta, Nazaré era cuidada por Vera, que a buscava e levava para consultas, comprava remédios e ajudava com burocracias do dia a dia. Ambas moravam em Samambaia. Mãe solo e doente, a auxiliar de limpeza não tinha família no DF, vivia nos fundos de uma casa e era auxiliada por vizinhos. Descobrira o câncer ao precisar de atendimento médico devido a uma tentativa de feminicídio.
"A história dela mexeu muito comigo. Era uma pessoa jovem e bonita. Tinha uma filha pequena. Acho que por ela ser mulher e o câncer atingir uma parte tão sensível e importante para nós, os seios, me sensibilizei ainda mais. É uma doença cruel. Como desenvolvemos essa ligação forte, passei a sofrer por vê-la naquele estado", recorda a técnica em enfermagem.
O setor da oncologia é, segundo a profissional, o espaço no qual as equipes se deparam com as histórias mais delicadas e surpreendentes do hospital. "Chegam pessoas contando que estavam vivendo normalmente e, por um motivo aleatório, fizeram algum exame que atestou a doença, muitas vezes, em um estado já avançado. Ali tudo muda. E acho que nós, por acompanharmos isso de perto, também mudamos", analisa.
O Correio começa hoje a série de reportagens Amor além do cuidado, que conta histórias de laços — de amor, amizade e compaixão — atados nos hospitais do Distrital Federal. São relatos emocionantes que mostram como, mesmo em um ambiente de aflição, é possível desenvolver vínculos dignos de mudar (e salvar) vidas.
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A promessa
Em 5 de janeiro de 2020, após voltar de um plantão, Vera recebeu a ligação mais temida, informando que a amiga havia piorado e a chamava. No leito, Nazaré fez um pedido que mudaria a vida da filha e da colega. "Poucos minutos antes de falecer, ela me pediu para cuidar de Letícia e não a deixar desamparada. Em um primeiro momento, achei que a ideia seria apenas auxiliar na criação, mas descobri que, quando Nazaré estava piorando, foi ao serviço social e colocou o meu nome como a pessoa a ser procurada caso não resistisse", narra.
Mesmo tendo pouca intimidade com a menina, à época com 11 anos, Vera acatou o pedido. "Quando falei que cuidaria de sua filha, veio o alívio. Sinto que ela conseguiu ir embora em paz". A técnica em enfermagem, que tinha quatro filhos — Kelly, 35; Hugo, 34; Keylla, 30; e Igor, 25 — recebeu a missão de acolher uma nova integrante na família. Letícia, a caçula.
A mudança
Depois do falecimento de Nazaré, levou dois anos até que Vera e seu marido, Lindomar Barbosa, obtivessem a guarda definitiva de Letícia. "Antes de tudo, fiz uma reunião com a família, consultando meus filhos e meu esposo sobre a entrada de uma nova pessoa em nossas vidas. Eles prontamente disseram para trazê-la e, aos poucos, desenvolveram uma relação de muita união. Então, ela virou a caçulinha da casa", diz.
Em várias fotografias compartilhadas por Vera, os irmãos aparecem reunidos e abraçados. Uma delas mostra a festa de 15 anos de Letícia. A decoração em lilás está no bolo, nos balões e no papel seda das balas de coco. A aniversariante, ao centro, está acompanhada de Kelly, Hugo, Keylla, Igor, Vera e Lindomar. Todos sorriem e posam para a foto.
Noutra imagem, postada em uma rede social, a família festeja os 18 anos da caçula. "Eu ainda compro roupas iguais para elas. Quando compro para uma, pego para a outra também", menciona, aos risos, apontando o vestido bege de mesmo modelo usado pelas três filhas na festa. Na postagem, a legenda: "Meus filhos lindos, só o Senhor sabe o quanto eu amo cada um de vocês".
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O amor
Segundo Vera, Letícia tem personalidade forte, é "geniosa", mas muito tímida e obediente. Também pela timidez, a jovem não se sentiu confortável de conversar com a reportagem. "Adolescente é assim mesmo", pontua a mãe. Em casa, a menina é quem ajuda a técnica em enfermagem a se embelezar. "Gosto da opinião dela".
Na mensagem de Dia das Mães deste ano, a caçula se declarou à mãe: "Queria te agradecer por tudo que fez e faz por mim. Por ter me criado, me ajudado e me ensinado tanta coisa. Não tenho mágoas, nem ressentimentos, só gratidão. Às vezes não sei demonstrar muito bem, mas reconheço e levo isso comigo. Só queria que você soubesse que tem um espaço importante em mim". Foi emoção.
"Letícia é minha filha amada e do coração, por quem dou a vida. É minha Letícia".
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