ENTREVISTA

'Um código de conduta é mais que urgente', afirma o advogado Melillo Dinis

À coluna Eixo Capital, do Correio Braziliense, o advogado e analista político Melillo Dinis, diretor do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), analisa os desafios da autorregulação do Judiciário

O debate sobre os limites da atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) voltou ao centro da agenda política e jurídica do país. A proposta de criação de um código de ética próprio para os magistrados, defendida pelo novo presidente da Corte, ministro Edson Fachin, reacende discussões sobre transparência, imparcialidade e controle democrático. Em entrevista à jornalista Ana Dubeux, para a coluna Eixo Capital, o advogado e analista político Melillo Dinis, diretor do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), analisa os desafios da autorregulação do Judiciário e defende maior responsabilidade e clareza institucional no funcionamento do Supremo.
 
O STF deveria adotar formalmente um código de ética próprio?
Na minha avaliação, um código de conduta ou de ética é mais que urgente. Creio que há, necessariamente, algumas premissas. Todo poder deve ser controlado. O Poder Judiciário tem ampliado muito a sua presença no espaço público. Mais presença exige mais controle, transparência, imparcialidade, abstenção de engajamento político e integridade. Sem isso, um poder que não é eleito perde a sua legitimidade e piora a qualidade da democracia, com a possibilidade de caracterizar um autoritarismo com corrupção. Há muitos bons exemplos. E temos algumas situações graves. A criação de um código de ética pode ser a resposta a algumas dessas questões. Não é a única fórmula. Mas pode consolidar um modelo para a exposição pública e a conduta privada dos magistrados, essa cada vez mais cobrada pela sociedade. Na atual conjuntura, há uma exigência ética da ordem democrática. Não é mais possível testemunhar situações em que a névoa de desconfiança em relação às condutas dos protagonistas dos tribunais superiores cause indignação na sociedade.

Em que um código de ética pode contribuir?
Há muitas dimensões em que a proposta de um código pode contribuir, tanto para o STF quanto para os demais membros dos tribunais superiores e para toda a sociedade. Penso em, no mínimo, duas: responsabilidade e autocontenção. A ética é um pressuposto das relações sociais, em cada tempo histórico. Sempre há, entretanto, a necessidade de, a partir da ideia de responsabilização (na elegante expressão inglesa accountability), criar regras para que a ética seja uma das marcas das instituições, especialmente das Cortes. Há outra necessidade em relação aos tribunais superiores. É tempo de autocontenção.

O senhor enxerga excessos?
O excesso de visibilidade de muitos dos ministros, em que pese a importância das opiniões de tão importantes juristas, não pode se confundir com uma tendência, cada vez mais presente, de que existe uma “antecipação” das posições jurídicas travestidas de análises políticas e decisões jurídicas. Aliás, a melhor frase inicial do mandato do atual presidente do STF foi: “Ao direito o que é do direito; à política o que é da política”. O Brasil é um campo repleto de situações que merecem a atenção de um código, como o que será construído a partir do trabalho do presidente do STF, ministro Edson Fachin. Há casos de familismos, promiscuidades entre o espaço público e o privado, relações nebulosas e, em muitas situações, um excesso de situações que reduzem a “autoridade”, como — auctoritas —, expressão latina que reúne moral, prestígio e influência, distinta da ideia de potestas, como um “poder” formal, dos ministros dos tribunais superiores.

A autorregulação dos ministros tem sido suficiente ou é preciso definir normas mais claras?
A autorregulação (que não se confunde com a autocontenção) tem sido totalmente insuficiente. Se no passado foi possível adotar um modelo em que ministros, individualmente e em conjunto, buscaram soluções especiais para conflitos éticos, a partir do crescimento do papel e da presença do Poder Judiciário após a Constituição de 1988, isso não está mais de acordo com o sentimento da maioria da sociedade. A transparência, para o bem e para o mal, é um dos eixos centrais da legitimidade do Poder Judiciário. Sem regras claras e submetidas ao debate público, o Poder Judiciário, especialmente os tribunais superiores, perderá muito de sua capacidade de resolução de conflitos e de redução de atritos com a sociedade.

Onde termina a esfera privada do magistrado e começa o dever institucional de preservar a imagem da Corte?
Juiz é função de Estado. E exige vocação para que cada personagem investido desse poder entenda que há alguns fatos da vida comum que lhe são restritos ou impedidos. A dimensão privada da profissão e do papel institucional, necessária e digna, não pode deixar dúvidas sobre a sua imparcialidade. A imparcialidade é a condição mínima do respeito das decisões judiciais. Sem isso, todo o sistema desmorona. Assim, qualquer medida que reduza os conflitos de interesses e os interesses pelo conflito e que amplie soluções equilibradas e justas, ajuda muito, ainda mais quando a quadra política e social que vivemos está fundada na desconfiança. A imagem institucional deriva exatamente dessa crença na imparcialidade. Creio que o centro de um código de conduta (e de contenção) é retomar maior confiança e melhorar a coesão social a partir das decisões dos tribunais superiores, com tarefas sempre difíceis. A falta de confiança diminui os espaços de liberdade. E sem liberdade não há justiça nem democracia.

O STF deve submeter-se a algum tipo de controle externo?
Não há poder na democracia que não passe pelo controle. Penso que a criação de um conjunto de regras deve ter como ponto de partida o princípio da independência da atividade jurisdicional. A independência judicial é um valor fundamental em uma democracia, mas não é um privilégio. É um meio para assegurar o Estado de Direito, ou seja, a independência judicial não se resume à proteção dos juízes, mas visa, em última instância, proteger a sociedade. Assim, nada pode ser criado que aumente a insegurança, especialmente a jurídica. Mas é preciso algum grau de controle. Não creio, ademais, que uma norma de conduta mude a necessária coragem da atuação dos ministros. Frouxo não pode ser ministro de uma Corte de Justiça. Aliás, penso que os corajosos vão apoiar, contribuir e aprimorar as regras republicanas de um código de conduta. São cidadãos, antes de autoridades. E o debate que precisamos é a partir da ideia de que a cidadania é o direito a ter direitos e o dever de ter deveres.

Mas há mecanismos internos…
Sobre os mecanismos internos, cada tribunal tem uma "corregedoria". Penso que é pouco. Acredito que devemos melhorar essas estruturas internas — formações, diálogos e mais presença no cotidiano. Todavia, há que oferecer mais eficiência aos processos de controle, submetê-los ao debate público, oferecer punições mais claras, encerrar a “aposentadoria compulsória com proventos proporcionais ao tempo de serviço” como prêmio pela conduta ilícita, no mínimo, para que se possa enfrentar essa questão tão difícil.

É necessário outro modelo de controle externo?
Sugiro, da mesma forma, debater o caso do STF. O CNJ — que tende ao corporativismo — não tem competência quando é o STF. A solução constitucional, do juízo político-jurídico na forma do impeachment, tão insistido por determinados setores da sociedade em relação aos ministros daquela Corte, parece-me extrema. Geralmente, as questões provocadas pelas representações se dão no campo das decisões de mérito e não das condutas pessoais ou coletivas. Penso que a aposta é criar um código de conduta (ou de ética) para o STF e, se houver coragem, uma corregedoria. Entretanto, essa ideia demanda uma mudança institucional, que não vejo a curto prazo. Nas sociedades democráticas, as palavras, ainda mais quando escritas como regra, constituem as relações sociais. Perdemos um pouco dessa consistência, por conta dos desgastes recentes, em todo o mundo, dos processos democráticos. Para dar ao código, porém, uma efetividade, e não apenas conversas, é preciso participação e controle da sociedade. Também é necessário saber que um código não é a solução às críticas à atuação dos tribunais superiores. Especialmente ao STF, maior guardião da Constituição, é uma forma de aumentar o controle dos controladores. Na minha avaliação, um código é um avanço. Não há um único “controlador dos controladores”, mas um sistema complexo de múltiplos atores e mecanismos (internos, externos, sociais) que buscam equilibrar autonomia e fiscalização, com desafios constantes de eficácia e independência. Esse é o jogo que precisamos, com um VAR mais competente!

O STF excedeu suas funções constitucionais e passou a ocupar espaço do Legislativo?
A fórmula da governabilidade proposta pela Constituição de 1988 está sob severa crise, diante das várias tensões dos últimos anos entre os Poderes. Mas é o que temos como democracia. É importante destacar que a democracia não é um regime projetado para o consenso, mas para o atrito. Funciona mal, mas funciona melhor do que qualquer alternativa. Produz confusão e colisão. Produz desencanto, cansaço e saturação. E nessa saturação encontram espaços os cantos de sereia do autoritarismo. A promessa da ordem como fator de progresso. Uma suposta eficácia. A destilação cirúrgica do poder em um único indivíduo ou em apenas um poder. Basta revisar a história do século XX para entender o custo: o autoritário ou o líder carismático se torna um totem; a lei é seu braço; a discordância, um obstáculo. O Estado autoritário e a sociedade autoritária vivem dentro do Estado democrático e da sociedade democrática. Há uma tensão permanente! São as instituições que servem como proteção para que o caldo não transborde. São as instituições republicanas, democráticas e que, em certa medida, exercem um controle do poder, cada uma a seu modo, apesar de seus equívocos e limites. E a cidadania é uma das instituições, mesmo que a sua presença seja mais fluída e cíclica. Todas elas formam um sistema de vigilância recíproca que impede que um país se precipite para o autoritarismo sem pagar um alto preço social, econômico e jurídico, desta feita insuportável.

Mas há uma sedução autoritária, não é?
O apelo autoritário é emocional, não racional. Baseia-se em uma fantasia: a suposta clareza proporcionada por um comando único com muita força. E é reforçado pela sensação de impotência que muitos experimentam quando observam um sistema multipolar, barulhento, incapaz de oferecer soluções simples para problemas complexos. Mas a clareza que o autoritarismo promete não é clareza: é obscuridade sem nuances. A eficácia que promete é eficácia apenas para o governante. E a estabilidade que promete é, na verdade, uma petrificação social. Como sabemos, a democracia brasileira está exausta, desacreditada, polarizada e instrumentalizada. Mas continua. Ela pulsa. Ela se corrige. Ela erra. Ela se recupera. Ela é imperfeita porque depende de nós. E isso, longe de ser uma desvantagem, é a sua maior força. A imperfeição democrática é a única que admite a reforma, a crítica e a retificação. Um modelo autoritário não admite nada. Nem mesmo o erro. A rigidez se torna um destino. E talvez seja conveniente dizê-lo com toda serenidade: aqueles que hoje fantasiam com o autoritarismo não sabem realmente o que pedem, porque nunca o viveram. Confundem o incômodo com a opressão, a frustração com o despotismo, o barulho parlamentar com um gulag, as decisões dos tribunais, especialmente do STF, como uma “ditadura de toga”. O desafio não é ridicularizá-los.

Qual é o desafio?
O desafio é lembrá-los de que a liberdade não é uma abstração, mas um hábito que se desgasta quando é banalizado. Diante dessa quadra, todos os Poderes acusam-se mutuamente de usurpação de espaço e de destruição da harmonia. E todos têm razão sobre os demais, com nenhuma razão sobre cada um. Há, na atual conjuntura, uma mudança dos padrões da presença e dos conflitos. Não vejo, em um futuro próximo, qualquer possibilidade de alteração. O que teremos, a médio e a longo prazos, e sob a mesma Constituição, é uma disputa em que todos deverão expor os seus objetivos, entre os pequenos interesses e o bem comum.

Mais Lidas