CIÊNCIA

Cientistas identificam a condição-chave para formação do câncer

Cientistas identificam as circunstâncias para que uma célula dê origem a tumores. Desmontar esse mecanismo pode levar a novas terapias

Paloma Oliveto
postado em 03/09/2021 06:00
Célula de câncer pancreático: estudo ajuda a explicar por que, mesmo com mutações, algumas estruturas não adoecem -  (crédito: Dawn Jaquish, UC San Diego/Divulgação)
Célula de câncer pancreático: estudo ajuda a explicar por que, mesmo com mutações, algumas estruturas não adoecem - (crédito: Dawn Jaquish, UC San Diego/Divulgação)

Todo tipo de câncer tem origem em uma mutação genética. Porém essas alterações estão presentes em milhares de células de pessoas saudáveis e, simplesmente, são descartadas, sem causar qualquer dano. Em outras, contudo, os mesmos erros do DNA evoluem para tumores malignos. A explicação habitual é que, para que isso ocorra, as variações nos genes devem ser muitas, mas essa resposta não convenceu totalmente uma equipe de pesquisadores do Centro de Câncer Memorial Sloan Kettering, nos Estados Unidos.

Usando o exemplo da toupeira, Richard White, médico e cientista que estuda melanoma na instituição, esclarece que não se trata sempre da mesma fórmula. “Sabemos, já há algum tempo, que o contexto celular importa na formação do câncer”, diz. A toupeira, continua White, é composta basicamente por células com anomalias genéticas, incluindo uma mutação do gene BRAF, que, em outros organismos vivos, pode levar ao melanoma. “O problema é que ainda não sabemos exatamente como o contexto combina com as mutações genéticas para promover o câncer”, diz o pesquisador.

Em um artigo publicado, ontem, na revista Science, a equipe deu um passo à frente, descrevendo um mecanismo chamado pelos cientistas de “competência oncogênica”, ou seja, o resultado de uma colaboração entre as mutações do DNA em uma célula e o conjunto particular de genes que são ativados na estrutura alterada.

Segundo White, as células competentes para formar o melanoma são capazes de acessar um conjunto de genes que, normalmente, são bloqueados aos melanócitos maduros (as células que produzem a melanina e dão a cor à pele). Para acessá-los, elas requerem proteínas específicas que atuam como chaves. Sem isso, são incapazes de formar um melanoma, mesmo quando têm mutações no DNA associadas ao câncer. O pesquisador diz que a descoberta fornece uma explicação de por que algumas células, mas não outras, podem causar câncer. Com essa informação, ele espera que potenciais alvos terapêuticos sejam desenvolvidos.

Fases celulares

O projeto das competências oncogênicas começou, há mais de uma década, quando White, no pós-doutorando, estudava melanoma em peixe-zebra. Esses pequenos animais são ideais para estudar o desenvolvimento do câncer porque é possível ver os tumores crescendo abaixo das escamas, além de ser fácil removê-los e estudá-los em nível molecular. “Quando observamos esses melanomas no peixe-zebra, pudemos ver que havia uma série de genes ativos que são mais característicos de células embrionárias do que de melanócitos maduros”, conta White. “Ficamos curiosos para saber por que esses genes foram ativados. Eles são importantes para o desenvolvimento do melanoma? E, em caso afirmativo, como?”

Para responder a essa pergunta, o pesquisador e sua equipe modificaram geneticamente o peixe-zebra, inserindo nele um gene BRAF mutado — o mesmo que é encontrado em cerca de metade dos melanomas. Eles introduziram o gene defeituoso de tal forma que ele seria ativado em três estágios do desenvolvimento dos melanócitos em diferentes peixes: crista neural (CN), melanoblasto (MB) e melanócitos. Essas fases se referem a estados celulares progressivamente mais diferenciados. “Você pode pensar nos estágios como semelhantes ao jardim de infância de melanócitos, à escola primária e à escola secundária”, compara White. Em seguida, os pesquisadores deixaram os peixes crescerem e observaram os tumores.

Após vários meses, descobriram que apenas os peixes com BRAF ativado nos estágios CN e MB eram capazes de formar tumores (a chamada competência oncogênica). As células com BRAF ativadas no estágio MC, não criavam cânceres. “O resultado foi surpreendente. Mas o que é verdade para os peixes não é necessariamente verdade para os humanos”, diz o pesquisador.

White, então, recorreu ao biólogo Lorenz Studer para realizar experimentos semelhantes em células humanas. A equipe deste último havia mostrado que era possível usar células-tronco pluripotentes humanas (hPSCs) para fazer cada um dos três estágios do desenvolvimento dos melanócitos.

Nesse caso, eles introduziram o gene BRAF mutado em hPSCs nos mesmos três estágios que foram estudados nos peixes e, em seguida, implantaram essas células em camundongos, na tentativa de ver quais eram capazes de formar tumores. Mais uma vez, apenas os dois primeiros estágios — CN e MB — evoluíram para o câncer.

Desbloqueio de genes

Os pesquisadores foram além, para investigar um possível mecanismo. Usando o que é chamado de perfil molecular, compararam o que havia de diferente nos genes ativos nos três estágios — tanto para os tumores do peixe-zebra quanto para os derivados de células-tronco humanas. A partir dessa comparação, identificaram que a diferença-chave era uma proteína específica, a ATAD2, que estava ativa nas células CN e MB, mas não nas MC.

ATAD2 é o que é chamado de fator modificador da cromatina: ela se liga a áreas de um cromossomo próximas aos genes e permite que esses sejam ativados. Proteínas como essa alteram o epigenoma da célula — a maneira como o DNA é empacotado e enrolado em uma célula — em vez do genoma, ou seja, a sequência do próprio DNA. As células com ATAD2 podem ativar um conjunto único de genes que, normalmente, são vistos apenas no desenvolvimento embrionário, enquanto aquelas sem ele não podem. “Em outras palavras, a ATAD2 é a chave que desbloqueia esses genes”, diz White.

Os cientistas dizem que seus resultados oferecem uma nova perspectiva importante sobre a formação do câncer, que contrasta com a sabedoria convencional. “A ideia padrão, que existe há décadas, é que você, basicamente, precisa de dois tipos de mutações no DNA para ter câncer: um oncogene ativado e um gene supressor de tumor desativado. Depois de superar esses dois obstáculos, o câncer se formará. Agora, temos essa coisa totalmente diferente, a competência oncogênica, que adiciona uma terceira camada à mistura”, diz White.

Arianna Baggiolini, principal autora do estudo e pós-doutoranda no laboratório Studer, compara a situação a um incêndio. “As mutações de DNA são como um fósforo aceso: se você tiver a madeira errada ou se ela estiver molhada, pode ter um pouco de tremulação, mas nenhum fogo. Mas, se você tiver a madeira certa e, talvez, alguns gravetos, a coisa toda queima”, disse, em nota. Nesse exemplo, o ATAD2 é o graveto. O desenvolvimento de um medicamento para removê-lo seria outra forma de tratar o câncer, além de direcionar as mutações do DNA.

Para provar que o ATAD2 estava desempenhando um papel decisivo, os cientistas fizeram experimentos em que retiraram o gene ou o adicionaram de volta. Quando o removeram em um modelo de peixe-zebra propenso a ter melanoma, as células perderam a capacidade de gerar tumores. Quando eles o adicionaram às células MC, elas ganharam essa capacidade. Para a equipe, essa é a prova de que esse gene é um componente crucial no contexto da formação do câncer.

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