O exame de sangue é um dos testes mais pedidos pelos médicos, já que, com ele, pode-se ter acesso a uma série de indicativos do funcionamento do corpo, como taxas de vitaminas e de colesterol. Cientistas acreditam que essa fonte de informações sobre o organismo humano tem segredos ainda mais valiosos. Por isso, têm se dedicado a pesquisas para, por exemplo, identificar, nesse fluido corporal, moléculas que ajudem a indicar precocemente o desenvolvimento de doenças de diagnóstico difícil, como a demência. A mesma abordagem poderá ser capaz de auxiliar na escolha do melhor tratamento oncológico e até de indicar quais os riscos de um indivíduo sofrer com a forma grave de uma doença.
Takayuki Teruya, pesquisador da Universidade Okinawa, é um desses profissionais em busca de explorações mais complexas no sangue. Ele e colegas buscam caminhos para identificar precocemente a demência. “A maioria dos especialistas tem focado na área neural, resolvemos voltar nossos olhos para o sangue”, relata em comunicado. Em uma pesquisa apresentada na revista Proceeding of the National Academy of Sciences (PNAS), Teruya e colegas usaram um método que mantém estáveis os glóbulos vermelhos, moléculas que compõem o sangue, para avaliar amostras colhidas de 24 pessoas — oito com demência, oito idosos saudáveis e oito jovens saudáveis.
Ao todo, foram analisados 124 metabólitos — substâncias produzidas por reações químicas que ocorrem dentro das células e dos tecidos. “Nosso corpo, normalmente, mantém os níveis desses metabólitos em equilíbrio, mas, à medida que envelhecemos e desenvolvemos doenças, eles podem flutuar e mudar”, relata o autor do estudo. A investigação mostrou que 33 metabólitos estavam relacionados à demência. “É importante ressaltar que alguns desses compostos têm efeitos tóxicos no sistema nervoso central”, frisa Teruya. “Ainda é muito cedo para dizer, mas esses dados podem sugerir uma possível causa mecanicista da demência, pois esses metabólitos podem levar ao comprometimento do cérebro.”
A equipe planeja observar, em estudos com ratos, se o aumento desses biomarcadores podem induzir à doença degenerativa. O maior ganho, apostam, será o desenvolvimento de um exame capaz de prever a demência. “A identificação desses compostos significa que estamos um passo mais perto de sermos capazes de diagnosticar molecularmente essa enfermidade cognitiva, e queremos nos dedicar a isso”, diz Teruya.
Para Priscilla Mussi, geriatra e coordenadora de Geriatria do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, a pesquisa fornece dados que ajudam a montar um pequeno quebra-cabeça de informações importantes relacionadas ao envelhecimento. “Esses metabólitos são novas pistas moleculares que podem nos ajudar a dizer se um paciente tem predisposição à demência”, explica. “Estudos semelhantes têm dados parecidos. Por exemplo, sabemos que pessoas bipolares que não se tratam durante a vida têm risco maior de ter esse prejuízo cognitivo quando mais velhas. Todas essas informações são valiosíssimas, pois podem nos ajudar a chegar ao diagnóstico precoce.”
A especialista acredita que um teste sanguíneo desenvolvido para diagnosticar a demência também pode incluir a análise de outras substâncias relacionadas à doença, fornecendo um resultado ainda mais apurado. “Esse é um tema que precisa ser mais estudado, até porque existem diferentes tipos de demência, o que dificulta as análises. Mas uma possibilidade interessante seria incluir a avaliação de níveis altos, no corpo, de substâncias antioxidantes que estão relacionadas à proteção dessa enfermidade”, ilustra. “
Cânceres
Nessa mesma linha, de aperfeiçoar terapias, a busca por indicativos de cânceres em amostras sanguíneas tem ganhado força. Isso porque, apesar de os tratamentos com foco no sistema imunológico, as imunoterapias, terem proporcionado benefícios a uma série de pacientes, não são todos que respondem bem a ela. A aposta é de que os exames de sangue ajudem esses indivíduos. “Os medicamentos de imunoterapia não são totalmente isentos de toxicidade. Seria ótimo ter um teste que indicasse qual paciente terá melhoras com o seu uso. Se pudermos poupar alguém dos riscos potenciais de um tratamento porque sabemos, pelo sangue, que essa pessoa não responderá bem, será um grande avanço”, afirma Katherine Panageas, pesquisadora do Centro de Pesquisa em Câncer Sloan Kettering, nos Estados Unidos.
Panageas e sua equipe avaliaram o sangue de 188 pessoas com melanoma antes de elas iniciarem o tratamento oncológico. A equipe usou a técnica chamada citometria de fluxo, uma ferramenta que analisa rapidamente as células com a ajuda de laser. Os pacientes com a pior resposta ao tratamento oncológico apresentaram o marcador no sangue LAG+, uma espécie de célula de defesa. “Essa assinatura imunológica está nos dizendo algo muito importante: quem responde à imunoterapia”, detalha a autora do estudo, publicado na revista Science Translational Medicine.
A fim de confirmar a descoberta, o teste foi repetido em 94 pessoas com câncer de bexiga, com o mesmo resultado. Para o grupo, o trabalho pode ser usado na criação do teste para a indicação de imunoterapia e no desenvolvimento de terapias que tenham como alvo o LAG+. “Claro, ainda existe muito a ser feito antes que essas descobertas possam ser aplicadas na clínica, mas estamos realmente entusiasmados com o potencial desses dados”, enfatiza Panageas. “Os medicamentos para imunoterapia são caros, portanto, é vital ter um meio de ‘combinar’ melhor os pacientes com os medicamentos disponíveis”, completa.
Alexandre Jacome, oncologista clínico do Grupo Oncoclínicas, em Brasília, tem a mesma opinião. “A descoberta desse receptor imune é algo que pode nos ajudar nessa tarefa de triagem e evitar essas complicações. É uma pesquisa que precisa de mais aprofundamento, claro, mas, caso isso se consolide, teremos uma boa opção de exame para ser feito em todos os pacientes antes do início do tratamento. É um teste que pode se tornar padrão”, aposta.
O médico explica que a maioria dos tumores solta substâncias na corrente sanguínea, e já há exames, prescritos ao longo do tratamento, que auxiliam a gerenciar o combate ao câncer. “Isso é algo muito positivo porque dispensa a biópsia, que é mais complicada de ser feita principalmente em órgãos de difícil alcance”, diz. “Quem sabe, no futuro, teremos um exame feito para pessoas saudáveis que aponte a presença de tumores mais cedo apenas com a análise do sangue e, dessa forma, poderemos dispensar esses exames mais invasivos totalmente?”, cogita, acrescentando que, para isso, são necessárias tecnologias ainda mais avançadas.
Risco de a covid se agravar
Cientistas americanos também têm estudado a composição do sangue para entender melhor o efeito do novo coronavírus e a ajudar na busca de testes de diagnóstico mais apurados. “Sabemos que há uma gama de respostas imunológicas ao vírus Sars-CoV-2, e detalhes relacionados a esses processos biológicos ainda não são bem compreendidos”, afirma Jihoon Lee, pesquisador do Fred Hutchinson Cancer Research Center, nos Estados Unidos, e um dos autores do estudo, publicado na revista Nature Biotechnology.
Lee e colegas de pesquisa coletaram amostras de sangue de 374 pacientes com covid-19 durante a primeira semana após o diagnóstico da enfermidade. O grupo analisou o plasma dos participantes minuciosamente, revirando um grupo de mais 1.050 metabólitos. Assim, descobriram que a gravidade da doença estava associada a uma expressão maior de células imunes CD8 + e T CD4 +. “Analisamos milhares de marcadores biológicos e descobrimos dois protagonistas que, quando estão mais latentes, nos dizem que um indivíduo pode ter complicações mais severas provocadas por essa doença”, relatam no artigo.
A equipe de pesquisa acredita que os dados podem ser usados para identificar pacientes com risco maior de sofrer com covid grave antes de os sintomas se desenvolverem. “Teremos como descobrir em poucos minutos e com apenas algumas gotas de sangue de um indivíduo se é necessário um atendimento mais minucioso. Isso pode fazer a diferença na recuperação”, enfatizam os cientistas.
Palavra de especialista
“Testes sanguíneos que denunciem a presença de uma enfermidade por meio de alterações metabólicas ou da atividade de células imunes fazem parte do que chamamos de medicina de precisão. Dentro dessa área, temos como identificar uma série de alterações específicas, diagnosticar determinadas doenças e, em alguns casos, até saber qual o melhor tipo de tratamento a ser usado. Isso seria algo semelhante ao que temos com os exames de urina, em que conseguimos observar qual a infecção de um paciente e que remédio usar. Essa é uma área ainda experimental, os estudos já nos dão alguns sinais que devemos seguir, como no caso da demência, mas precisamos de análises mais aprofundadas para confiar apenas nessa análise do sangue. Acredito que, no futuro, poderemos ter testes sanguíneos mais minuciosos disponíveis, que serão extremamente úteis no combate a uma série de doenças, principalmente as neurodegenerativas, que ainda são as menos compreendidas.”
Rafael Vasconcelos, hematologista do Hospital Santa Marta, em Brasília
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Risco de a covid se agravar
Cientistas americanos também têm estudado a composição do sangue para entender melhor o efeito do novo coronavírus e a ajudar na busca de testes de diagnóstico mais apurados. “Sabemos que há uma gama de respostas imunológicas ao vírus Sars-CoV-2, e detalhes relacionados a esses processos biológicos ainda não são bem compreendidos”, afirma Jihoon Lee, pesquisador do Fred Hutchinson Cancer Research Center, nos Estados Unidos, e um dos autores do estudo, publicado na revista Nature Biotechnology.
Lee e colegas de pesquisa coletaram amostras de sangue de 374 pacientes com covid-19 durante a primeira semana após o diagnóstico da enfermidade. O grupo analisou o plasma dos participantes minuciosamente, revirando um grupo de mais 1.050 metabólitos. Assim, descobriram que a gravidade da doença estava associada a uma expressão maior de células imunes CD8 + e T CD4 +. “Analisamos milhares de marcadores biológicos e descobrimos dois protagonistas que, quando estão mais latentes, nos dizem que um indivíduo pode ter complicações mais severas provocadas por essa doença”, relatam no artigo.
A equipe de pesquisa acredita que os dados podem ser usados para identificar pacientes com risco maior de sofrer com covid grave antes de os sintomas se desenvolverem. “Teremos como descobrir em poucos minutos e com apenas algumas gotas de sangue de um indivíduo se é necessário um atendimento mais minucioso. Isso pode fazer a diferença na recuperação”, enfatizam os cientistas. (VS)
Palavra de especialista
Medicina de precisão
“Testes sanguíneos que denunciem a presença de uma enfermidade por meio de alterações metabólicas ou da atividade de células imunes fazem parte do que chamamos de medicina de precisão. Dentro dessa área, temos como identificar uma série de alterações específicas, diagnosticar determinadas doenças e, em alguns casos, até saber qual o melhor tipo de tratamento a ser usado. Isso seria algo semelhante ao que temos com os exames de urina, em que conseguimos observar qual a infecção de um paciente e que remédio usar. Essa é uma área ainda experimental, os estudos já nos dão alguns sinais que devemos seguir, como no caso da demência, mas precisamos de análises mais aprofundadas para confiar apenas nessa análise do sangue. Acredito que, no futuro, poderemos ter testes sanguíneos mais minuciosos disponíveis, que serão extremamente úteis no combate a uma série de doenças, principalmente as neurodegenerativas, que ainda são as menos compreendidas.”
Rafael Vasconcelos, hematologista do Hospital Santa Marta, em Brasília