Doença sexualmente transmissível

HIV: mesmo com antirretroviral, vírus não fica totalmente adormecido

Estudos mostram que os remédios não fazem com que o HIV hiberne. Há a produção de material genético e proteínas que podem estimular respostas imunológicas

Não tomar antirretrovirais, além de tornar a carga viral detectável, permite que o vírus seja transmitido, alertam médicos -  (crédito: Getty Images)
Não tomar antirretrovirais, além de tornar a carga viral detectável, permite que o vírus seja transmitido, alertam médicos - (crédito: Getty Images)
Isabella Almeida
postado em 14/09/2023 06:00

Durante o tratamento com antirretrovirais, acreditava-se que o HIV ficava adormecido no corpo humano, em reservatórios de células. Em estudos independentes publicados na edição desta quarta-feira (13/09) da revista Cell Host & Microbe, cientistas mostram que não. Segundo eles, esses vírus produzem, espontaneamente, RNA e proteínas virais que podem afetar respostas imunológicas específicas dos pacientes. A descoberta, acreditam, pode ser o caminho para o desenvolvimento de novas terapias e até de abordagens curativas.

Estudos anteriores mostraram que, quando esses reservatórios de HIV adormecidos são reativados em laboratório, eles passam a produzir RNA e proteínas virais. No entanto, ainda não era claro se isso também acontecia em pessoas infectadas pelo vírus. "Queríamos perceber se esse fenômeno é real e, em caso afirmativo, que partes do vírus estão sendo expressas e se há impacto no sistema imunológico. Mesmo nas pessoas que são tratadas, o HIV continua tendo alguma atividade e continua a interagir com o sistema imunitário. Temos que entender se essas interações contínuas têm consequências clinicamente relevantes", afirma, em nota, Daniel Kaufmann, pesquisador da Universidade de Montreal, no Canadá, e coautor de um dos estudos.

Para investigar a dinâmica, Kaufmann e colegas colheram amostras de sangue de 18 pessoas com HIV e submetidas a tratamento com antirretrovirais durante mais de três anos. O material foi analisado a partir da técnica de citometria de fluxo de RNA, com o objetivo de identificar e classificar as células T CD4 , que são as atacadas pelo HIV. Depois, a equipe examinou se essas estruturas estavam infectadas com o vírus e produzindo o RNA do HIV ou suas proteínas.

Dos 18 pacientes, 14 (77%) tinham reservatórios de HIV que produziam espontaneamente RNA viral. Em sete (38%), os reservatórios virais também produziram proteínas, incluindo a p24, um componente do invólucro do vírus. Kaufmann explica que a maior parte dos vírus que permanecem no corpo durante o tratamento com antirretrovirais é defeituosa, não consegue realmente se multiplicar. "Mas descobrimos que esses vírus defeituosos ainda podem produzir RNA viral e, às vezes, proteínas", afirma. Esse comportamento, explicam os autores, é suficiente para estimular uma resposta imunológica.

Os cientistas também notaram que as respostas imunitárias específicas do HIV mais fortes foram associadas a reservatórios de vírus mais ativos. Para Kauffman, as informações sugerem que o RNA e as proteínas produzidas por esses reservatórios podem ser impulsionadores de inflamação. "Isso pode ser importante porque um subconjunto de pessoas tratadas com sucesso com antirretroviral ainda tem consequências negativas de viver com a infecção, por exemplo, doença cardíaca acelerada, fragilidade e osteoporose prematura", pontua.

Cura

No outro estudo sobre o tema, cientistas dos Estados Unidos descrevem que um subconjunto de células T CD4 expressa espontaneamente RNA viral durante o período de tratamento com antirretrovirais. Segundo a pesquisa, foram observadas menores quantidades de proteínas em pacientes que enfrentavam a fase de infecção aguda. Porém, as respostas imunológicas eram semelhantes em relação àqueles no estágio de infecção crônica.

"Provavelmente, as estratégias de remissão do HIV terão que visar a produção de proteínas virais durante os tratamentos (...) para controlar a recuperação do vírus após a interrupção da terapia", indica, em nota, Lydie Trautmann, pesquisadora da Universidade Oregon de Saúde e Ciência, nos Estados Unidos.

Victor Bertollo, infectologista do Hospital Anchieta, em Brasília, concorda que essas descobertas podem ser o início de uma caminhada rumo a novas terapêuticas. "Muito se estuda sobre esses reservatórios porque a gente precisa de alguma forma, atingi-los para, futuramente, conseguir promover a cura do vírus do HIV. Estudos como esse, sobre atividade do vírus no reservatório, podem ser uma primeira etapa para alguma proposição eventual de tratamento de fato curativo, que seria a eliminação de todo esse reservatório do organismo", afirma.

Werciley Vieira Júnior, infectologista do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, concorda. "Os tratamentos podem ser afetados com esses resultados. A gente pode descobrir remédios que penetrem no santuário e consigam inibir essa mínima replicação, o que torna a abordagem mais efetiva para eliminar o vírus", ilustra.

Palavra de especialista: Sob controle

"Com o tratamento antirretroviral, a gente consegue, hoje, suprimir o vírus circulante no sangue. Os indivíduos que fazem esse tratamento ficam com a carga indetectável no organismo. Isso permite que não tenham complicações decorrentes do HIV e que atinjam uma expectativa de vida similar à da população geral, além de fazer com que não transmitam o vírus. Temos dados bastante robustos de que indivíduos com carga viral indetectável não transmitem. Porém, se essas pessoas param com os medicamentos, esses reservatórios permitem que o vírus passe a replicar novamente e, aí, a pessoa pode voltar a desenvolver a Aids propriamente dita."

Victor Bertollo, infectologista do Hospital Anchieta

 

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