
Um grupo de pesquisadores da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, desenvolveu um método inovador para a identificação de fenótipos em tecidos cancerígenos, utilizando, exclusivamente, imagens obtidas por microscopia óptica sem marcadores e algoritmos de inteligência artificial (IA) baseados em aprendizado profundo. A técnica, descrita em artigo publicado na revista Biophotonics Discovery, foi aplicada ao câncer de pâncreas uma das formas mais letais da doença e obteve uma taxa de acerto superior a 89% na identificação de padrões fenotípicos, sem necessidade de coloração, marcadores químicos ou sequenciamento genético.
Esse avanço promete redefinir a forma como os médicos e cientistas interpretam tecidos biológicos e diagnosticam condições específicas. A descoberta está alinhada com os princípios da medicina de precisão, que busca personalizar o tratamento médico de acordo com as características biológicas específicas de cada paciente. Atualmente, a determinação de fenótipos celulares — ou seja, a identificação das características observáveis de células afetadas por doenças — depende de testes dispendiosos, como imunohistoquímica, sequenciamento genético ou ensaios moleculares complexos. Esses procedimentos, embora eficazes, são inacessíveis para muitos pacientes devido ao alto custo, à complexidade técnica e à necessidade de infraestrutura especializada.
A solução proposta pela equipe norte-americana utiliza uma combinação de tecnologias ópticas e inteligência artificial para contornar essas limitações. O primeiro passo envolve a utilização de microscopia sem marcadores — uma técnica que dispensa o uso de corantes e explora propriedades ópticas naturais dos tecidos. Nessa abordagem, os pesquisadores capturam imagens de amostras biológicas com base em duas respostas ópticas principais: a autofluorescência (emissão natural de luz por biomoléculas) e a geração de segundo harmônico (um fenômeno óptico não linear associado à presença de colágeno, componente fundamental da matriz extracelular).
Em seguida, essas imagens são alinhadas com dados obtidos por transcriptômica espacial — técnica que mapeia a expressão gênica diretamente sobre o tecido, revelando como os genes se comportam em diferentes regiões. Esses mapas servem como referência para treinar um modelo de rede neural profunda, que aprende a reconhecer padrões visuais associados a fenótipos específicos.
Uma vez treinado, o algoritmo é capaz de classificar novos tecidos apenas com base nas imagens ópticas, dispensando completamente os dados genéticos adicionais. O resultado é uma ferramenta de diagnóstico automatizada, rápida, de baixo custo e com precisão próxima à dos métodos convencionais.
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O estudo também comparou o desempenho da IA com técnicas tradicionais de análise de imagem. Os métodos convencionais — baseados em análise morfológica, segmentação de estruturas ou extração manual de características — foram incapazes de prever os fenótipos com a mesma eficácia. Isso reforça o papel essencial da inteligência artificial no processo, ao permitir a detecção de padrões sutis e complexos que escapam à observação humana e aos algoritmos clássicos.
Essa capacidade de correlacionar sinais ópticos com fenótipos moleculares sem a intervenção de reagentes químicos representa um avanço importante na integração entre biotecnologia, engenharia óptica e ciência de dados. Trata-se de uma das primeiras investigações a explorar, de forma direta e com sucesso, a interface entre imagens ópticas não invasivas e perfis genômicos espaciais, sinalizando o surgimento de uma nova geração de ferramentas diagnósticas.
Personalização
Além de sua relevância técnica, a proposta desenvolvida pela equipe de T. Sawyer e S. Guan possui forte apelo prático. Em um cenário global onde o acesso a testes de precisão ainda é limitado a grandes centros médicos ou laboratórios especializados, a possibilidade de utilizar imagens simples — geradas por microscópios ópticos relativamente acessíveis — pode levar os benefícios da medicina personalizada a populações antes excluídas desse tipo de atendimento.
A adoção em larga escala dessa tecnologia pode acelerar diagnósticos, reduzir custos operacionais em laboratórios clínicos e facilitar decisões terapêuticas baseadas em dados objetivos. O modelo também abre portas para aplicações além do câncer pancreático, sendo potencialmente adaptável para outras doenças oncológicas, inflamatórias ou degenerativas, desde que seja possível gerar imagens ópticas representativas dos tecidos afetados.
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A combinação entre IA, microscopia sem marcadores e transcriptômica espacial é vista como um novo paradigma na análise de tecidos, com implicações diretas não apenas para diagnósticos clínicos, mas também para pesquisa básica em biologia celular, desenvolvimento de medicamentos e descoberta de novos biomarcadores.
O próximo passo será validar a técnica em estudos clínicos de maior escala, com diferentes tipos de tecidos e perfis genéticos, além de testar sua robustez em ambientes hospitalares reais. A integração com plataformas de microscopia já existentes, bem como a simplificação do pipeline de análise de dados, são pontos-chave para sua aplicação prática.
*Estagiária sob supervisão de Renata Giraldi
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Como o uso de IA e microscopia sem marcadores pode impactar a prática oncológica no Brasil?
O uso combinado de inteligência artificial (IA) e microscopia sem marcadores pode transformar o diagnóstico oncológico no Brasil ao permitir a análise de tecidos com alta precisão e em tempo real, sem a necessidade de corantes ou reagentes. Isso reduz custos, simplifica os processos laboratoriais e acelera o diagnóstico. No contexto brasileiro, essa tecnologia pode viabilizar diagnósticos mais rápidos e precisos, mesmo em áreas com menor infraestrutura. Além disso, favorece decisões terapêuticas mais individualizadas, com a IA identificando padrões específicos nos tecidos, e reduz a dependência de insumos importados, como reagentes e anticorpos.
Essa técnica pode tornar a medicina de precisão mais acessível no SUS?
Sim, essa técnica pode contribuir para tornar a medicina de precisão mais acessível no SUS, desde que seja implantada com planejamento e investimento. A microscopia sem marcadores diminui a necessidade de exames caros e demorados, como testes genéticos complexos. A IA pode automatizar a análise de imagens, aliviando a carga dos patologistas e aumentando a eficiência dos serviços. Em redes públicas como o SUS, pode ser utilizada para triagem e estratificação de pacientes, otimizando o uso de recursos e direcionando terapias-alvo com mais precisão. No entanto, isso depende de investimentos em infraestrutura, capacitação profissional e padronização dos protocolos.
Quais os principais desafios para aplicar esse método na realidade brasileira?
Os principais desafios incluem a limitação da infraestrutura tecnológica em muitos hospitais públicos, a ausência de padronização e validação clínica dos algoritmos em populações brasileiras, a necessidade de capacitação de profissionais para utilizar e interpretar as tecnologias, o alto custo inicial dos equipamentos e dos sistemas de IA, além de questões éticas e regulatórias como a segurança de dados e a aprovação por órgãos como a Anvisa.
Esse avanço pode melhorar o prognóstico de pacientes com câncer de pâncreas?
Sim, esse avanço tem potencial para melhorar significativamente o prognóstico de pacientes com câncer de pâncreas, especialmente se aplicado ao diagnóstico precoce. Esse tipo de câncer é altamente letal por ser geralmente detectado tardiamente. A IA associada à microscopia sem marcadores pode identificar alterações celulares precoces, classificar o tumor de forma mais precisa e detectar padrões prognósticos não visíveis ao olho humano. Isso pode levar a terapias mais adequadas e a um impacto positivo na sobrevida dos pacientes. (RB)
Ciência e Saúde
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