
Milhares de anos atrás, antigas populações empreenderam uma jornada desafiadora, cruzando centenas de quilômetros de gelo sobre o Estreito de Bering até o mundo desconhecido das Américas. Agora, um estudo publicado na revista Science sugere que esses nômades carregavam algo surpreendente com eles: um fragmento de DNA herdado de uma espécie extinta de hominídeo, que pode ter ajudado os humanos a se adaptarem aos desafios de seu novo lar.
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"Em termos de evolução, este é um salto incrível", disse Fernando Villanea, um dos dois principais autores do estudo e professor assistente do Departamento de Antropologia da Universidade do Colorado em Boulder. "Isso demonstra um nível de adaptação e resiliência dentro de uma população simplesmente impressionante."
A pesquisa lança um novo olhar sobre uma espécie conhecida como denisovanos. Esses antigos parentes dos humanos viveram desde o que hoje é a Rússia, ao sul, até a Oceania e a oeste, até o Planalto Tibetano. Eles provavelmente foram extintos há dezenas de milhares de anos. Sua existência, no entanto, permanece pouco compreendida: cientistas identificaram o primeiro espécime conhecido há apenas 15 anos, a partir do DNA de um fragmento de osso encontrado em uma caverna na Sibéria. Assim como os neandertais, eles podem ter tido sobrancelhas proeminentes e ausência de queixo. "Sabemos mais sobre seus genomas e como se comporta a química corporal do que sobre sua aparência", disse Villanea.
Um crescente corpo de pesquisas mostrou que os denisovanos cruzaram com neandertais e humanos, moldando profundamente a biologia das pessoas que vivem hoje. Para explorar essas conexões, Villanea e os colegas, incluindo o coautor principal, David Peede, da Universidade Brown, examinaram os genomas de humanos de todo o mundo. Em particular, a equipe se concentrou em um gene chamado MUC19, que desempenha um papel importante no sistema imunológico.
O grupo descobriu que humanos com ascendência indígena americana têm maior probabilidade do que outras populações de carregar uma variante deste gene, que veio dos denisovanos. Em outras palavras, a antiga herança genética pode ter ajudado os humanos a sobreviver nos ecossistemas completamente novos da América do Sul e do Norte.
Villanea acrescentou que a função do MUC19 no corpo humano é tão misteriosa quanto a dos próprios denisovanos. É um dos 22 genes em mamíferos que produzem mucinas. Essas proteínas fabricam o muco, que, entre outras funções, pode proteger os tecidos de patógenos. "Parece que o MUC19 tem muitas consequências funcionais para a saúde, mas estamos apenas começando a entender esses genes", disse ele.
Transmissão
Pesquisas anteriores mostraram que os denisovanos carregavam sua própria variante do gene MUC19, com uma série única de mutações, que eles transmitiram a alguns humanos. Esse tipo de mistura era comum no mundo antigo: a maioria dos humanos vivos hoje carrega algum DNA neandertal, enquanto o DNA denisovano compõe até 5% dos genomas de pessoas de Papua-Nova Guiné.
No estudo atual, Villanea e colegas queriam aprender mais sobre como essas cápsulas do tempo genéticas moldam nossa evolução. O grupo analisou dados já publicados sobre genomas de humanos modernos do México, Peru, Porto Rico e Colômbia, onde a ancestralidade e o DNA indígena americano são comuns.
Eles descobriram que uma em cada três pessoas modernas de ascendência mexicana carrega uma cópia da variante denisovana do MUC19 — principalmente em partes de seu genoma que vêm da herança indígena americana. Isso contrasta com pessoas de ascendência centro-europeia, das quais apenas 1% carregam essa variante.
Os pesquisadores descobriram algo ainda mais surpreendente: em humanos, a variante genética denisovana parece estar cercada por DNA de neandertais. "Esse DNA é como um Oreo, com um centro denisovano e 'biscoitos neandertais'", disse Villanea. Para o cientista, antes de os humanos atravessarem o Estreito de Bering, os denisovanos cruzaram com os neandertais, transmitindo o MUC19 aos seus descendentes. Então, em um jogo de trocas genéticas, os neandertais compartilharam o material com humanos modernos. É a primeira vez que cientistas identificam a transferência genética dos denisovanos para os neandertais e, em seguida, para o Homo sapiens.
Posteriormente, esse último migrou para as Américas, onde a seleção natural favoreceu a disseminação do MUC19 "emprestado".
Função biológica desvendada
Ainda não está claro por que a variante denisovana identificada no estudo publicado ontem na revista Science se tornou tão comum nas Américas do Sul e do Norte, mas não em outras partes do mundo. O líder da pesquisa, Fernando Villaneam professor assistente do Departamento de Antropologia da Universidade do Colorado, em Boulder, observou que os primeiros povos que viveram no continente provavelmente encontraram condições diferentes de tudo na história da humanidade, incluindo novos tipos de alimentos e doenças. O DNA denisovano pode ter lhes dado ferramentas adicionais para lidar com desafios como esses.
“De repente, as pessoas tiveram que encontrar novas maneiras de caçar, novas maneiras de cultivar, e desenvolveram tecnologias muito interessantes em resposta a esses desafios”, disse ele. “Mas, ao longo de 20 mil anos, seus corpos também se adaptaram biologicamente.”
“Do ponto de vista evolutivo, essa descoberta mostra como o cruzamento ancestral pode ter efeitos que ainda vemos hoje”, disse a coautora autora do estudo Emilia Huerta-Sánchez, professora de ecologia, evolução e biologia organismal na Universidade Brown. “Do ponto de vista biológico, identificamos um gene que parece ser adaptativo, mas cuja função ainda não foi caracterizada. Esperamos que isso leve a estudos adicionais sobre o que esse gene realmente faz.”
Para construir o panorama retratado na pesquisa, Villanea planeja estudar como as diferenças nas variantes do gene MUC19 afetam a saúde dos humanos que vivem hoje. Por enquanto, ele tem uma certeza: estudo é uma prova do poder da evolução. "O que as populações indígenas americanas fizeram foi realmente incrível", disse. "Elas passaram de um ancestral comum que vivia ao redor do Estreito de Bering para se adaptar biológica e culturalmente a este novo continente que possui todos os tipos de biomas do mundo."
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