
Mesmo sem diagnóstico de doença celíaca nem alergia alimentar, uma em cada 10 pessoas no mundo relata sintomas atribuídos ao consumo de glúten. A conclusão é do primeiro levantamento mundial, que analisou 25 estudos de 16 países, incluindo o Brasil, com 49 mil participantes, publicada na revista Gut. Segundo os autores, o fenômeno cresce globalmente e levanta dúvidas sobre o quanto da percepção de intolerância à proteína do trigo está realmente associada ao ingrediente ou a outros fatores.
Descrita como "sensibilidade ao glúten não celíaca", a prevalência média da condição autorrelatada é de 10,3%. Os autores, porém, encontraram uma variação significativa: países como Chile registram taxas muito baixas (0,7%), enquanto a Arábia Saudita chega a quase 36%. O Brasil segue o padrão mundial, com 10,5% da população apontando algum sintoma relacionado ao consumo do trigo sem diagnóstico fechado.
Os autores do estudo, da Universidade de Sheffield, no Reino Unido, destacam que 40% das pessoas que relatam a condição adotaram dietas sem glúten, mesmo sem orientação médica nem diagnóstico confirmado. "A sensibilidade sem doença celíaca não tem marcadores laboratoriais reconhecidos e, por isso, o diagnóstico é feito por exclusão", escreveram.
Inchaço
Apesar de ser frequentemente relacionada a desconfortos digestivos, a sensibilidade ao glúten envolve manifestações em outras partes do corpo. A revisão aponta que os sintomas gastrointestinais mais comuns são inchaço abdominal (71%), dor (36%), constipação e diarreia. Entre os extraintestinais, aparecem fadiga, dores de cabeça e articulares.
Fernanda Soubak, médica pediatra especialista em alergia e imunologia da plataforma de consultas Inki, destaca que sensibilidade ao trigo não é a mesma coisa que alergia, uma condição que afeta 0,8% da população mundial, segundo o artigo publicado na Gut. "A alergia é uma reação imediata mediada por anticorpo e ocorre de minutos a até duas horas após o contato. Pode ser grave", diz. "Já a sensibilidade ao glúten não celíaca (SGTNc) não tem mecanismo imunológico envolvido, tem sintomas vagos, inespecíficos e algumas vezes subjetivos, e ocorre de horas a dias após a ingestão."
Muitas vezes, os sintomas associados à SGTNc podem estar relacionados a outros nutrientes, incluindo diversos componentes do trigo. "Nem sempre a culpa é do glúten", alerta Gabriel Moliterne, nutricionista do Hospital Albert Sabin, em São Paulo. "Por exemplo, em um estudo feito na Noruega com pacientes que se diziam com SGTNc, o que causava os sintomas não era o glúten, mas certos açúcares chamados fructanos, que existem no trigo", observa.
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Fermentáveis
Os fructanos também estão em diversos alimentos, como alho, cebola, brócolis, beterraba, melancia e figos secos, entre outros. Formados por cadeias de frutose não totalmente digeridas pelo intestino delgado, são fermentados no cólon por bactérias, provocando sintomas como inchaço e dor abdominal. Fazem parte de um conjunto de grupo de carboidratos fermentáveis conhecidos como FODMAP.
Thaís Fernanda Gomes, nutricionista clínica especialista em gastroenterologia do Hospital Samaritano Higienópolis, em São Paulo, esclarece que, para diferenciar a sensibilidade ao glúten da intolerância a FODMAPs, é preciso fazer uma análise clínica minuciosa. "O método utilizado para identificar essas condições é uma abordagem em três fases, compostas por uma triagem inicial e completa, exclusão de diagnósticos alternativos e avaliação dietética completa com protocolos de eliminação e reintrodução gradual, sempre com o acompanhamento de um nutricionista", diz.
Retirar o glúten por conta própria por acreditar ser sensível à proteína pode causar mais problemas do que os sintomas iniciais do paciente. "Entre outras coisas, aderir a uma dieta isenta de glúten pode provocar aumento de peso, já que os produtos sem glúten industrializados muitas vezes contêm mais açúcar, gorduras saturadas e calorias", alerta Thaís Fernanda Gomes. "Também podem ocorrer efeitos negativos na microbiota, visto que a baixa ingestão de fibras, prebióticos e menor diversidade alimentar podem comprometer a saúde intestinal."
Metabolismo
Por fim, a nutricionista afirma que a dieta sem glúten feita por conta própria também pode aumentar o colesterol e o triglicerídeos e ocasionar resistência à insulina e síndrome metabólica. Gabriel Moliterne, nutricionista do Hospital Albert Sabin, lembra que a retirada da proteína sem indicação também tem consequências nutricionais negativas.
Segundo Moliterne, uma revisão científica recente constatou que a prática é associada frequentemente à deficiência das vitaminas B12 e B9 (folato) de ferro. "Isso acontece porque pão integral normal é rico em vitamina do complexo B. Quando você tira esse alimento sem substituir por algo equivalente à sua ingestão nutricional, pode acontecer de as taxas desses nutrientes caírem bastante."
Algumas das consequências da deficiência de B12 e folato são exatamente aquelas atribuídas ao glúten: fadiga, fraqueza e formigamento. "Não estou dizendo que tem de comer pão todos os dias, esse alimento é totalmente substituível, mas precisamos de um protocolo de substituições, e não sair cortando as coisas."
Saiba Mais
Quatro perguntas para
Layssa Ribeiro de Oliveira, gastroenterologista do Hospital Brasília, da Rede Américas
O que explica um número tão alto de pessoas se identificando como "sensíveis ao glúten"?
Em parte, pelo aumento das discussões sobre saúde, bem-estar e emagrecimento. Entre as queixas mais comuns está a sensação de inchaço — distensão abdominal. Nesse cenário, ganhou força a ideia de que o glúten e a lactose seriam os principais vilões, e, por isso, o termo "sensibilidade ao glúten não celíaca" tem estado em evidência. Esse termo é usado para abranger sinais e sintomas intestinais, que podem estar acompanhados de manifestações extraintestinais, e que melhoram quando o glúten é excluído da dieta. Mas a prevalência pode estar superestimada, já que muitos desses sintomas se confundem com distúrbios gastrointestinais funcionais que não são necessariamente provocados pelo glúten, como a Síndrome do Intestino Irritável (SII), que também pode ser desencadeada por outros componentes do trigo.
Como é feita a diferenciação entre a sensibilidade não celíaca ao glúten de outras condições, como a SII?
A diferenciação entre essas patologias, que frequentemente compartilham sintomas gastrointestinais como dor abdominal, diarreia e fadiga, exige uma investigação clínica detalhada. A sensibilidade não celíaca ao glúten, por não ter marcador biológico, é considerada um diagnóstico de exclusão. Após descartar doença celíaca e alergia ao trigo com exames específicos, avalia-se a resposta do paciente a uma dieta sem glúten e à reintrodução controlada. É importante salientar que, após um ou dois anos de restrição, deve-se tentar a reintrodução do glúten na tentativa de determinar uma dose tolerável. E cada vez mais têm sido estudadas terapias direcionadas ao microbioma.
O eixo intestino-cérebro ajuda a explicar alguns casos de percepção da sensibilidade não celíaca ao glúten?
Sim. Muitos estudos têm demonstrado as interações bidirecionais entre o cérebro e o intestino que contribuem para a geração, a percepção e o relato dos sintomas. Compreender o eixo cérebro-intestino é crucial para o diagnóstico.
É comum encontrar pacientes que acreditam ter sensibilidade ao glúten, mas, na verdade, reagem a FODMAPs?
Na prática clínica, é frequente que esses pacientes cheguem ao consultório já com o autodiagnóstico simultâneo de síndrome do intestino irritável e de sensibilidade ao glúten não celíaca, o que demonstra como a sobreposição de sintomas e o desconhecimento sobre os reais gatilhos dietéticos levam à confusão e à restrição alimentar desnecessária. (PO)
Mais estudos sobre eixo intestino-cérebro
Um dado que chamou a atenção dos pesquisadores da Universidade de Sheffield sobre pessoas que se autodeclaram sensíveis ao glúten foi a predominância feminina: mulheres têm mais que o dobro de probabilidade de acreditarem ter a condição, mesmo sem diagnóstico, na comparação com homens (14% contra 7,6%, em média). Além disso, o estudo identificou maior frequência de ansiedade, depressão e síndrome do intestino irritável entre aqueles que relatam sensibilidade ao ingrediente.
A associação entre sensibilidade autorreferida e transtornos psicológicos reforça, segundo os autores do artigo, publicado na revista Gut, a hipótese de que mecanismos neurológicos possam ter papel importante no desencadeamento de sintomas. "Parte importante da literatura recente sugere que fatores psicológicos e mecanismos ligados ao eixo intestino-cérebro podem estar envolvidos", escreveram.
Nervo vago
"Não é que os sintomas sejam fruto da imaginação, eles são reais", esclarece Gabriel Moliterne, nutricionista do Hospital Albert Sabin, em São Paulo. "O que acontece é que o intestino e o cérebro estão conectados pelo nervo vago. Quando a gente está ansioso, o nosso intestino sofre, e, quando o nosso intestino sofre, a gente fica mais ansioso", descreve.
Em um estudo citado no artigo publicado na Gut, metade dos participantes foi informada que iria comer um alimento com glúten, embora, na verdade, tenham recebido um placebo. "O que achou que consumiu glúten teve piora dos sintomas. Era apenas expectativa. Às vezes, você precisa de um nutricionista, e às vezes você precisa de um psicólogo, e às vezes precisa dos dois trabalhando juntos", acredita.
Como a sensibilidade ao glúten sem doença celíaca é uma condição real, os autores do artigo insistem na necessidade de uma investigação clínica rigorosa. "Também há urgência de critérios clínicos mais objetivos, além da ampliação das pesquisas sobre a relação entre o intestino e o sistema nervoso em doenças gastrointestinais", concluíram os pesquisadores da universidade britânica. (PO)
Atenção à gravidade dos sinais
Fernanda Soubak, médica pediatra, especialista em alergia e imunologia da plataforma Inki, explica os sinais de alerta para um quadro verdadeiramente alérgico, diferente da sensibilidade não celíaca:
* Aparecimento rápido dos sintomas (em até duas horas) após o contato com trigo, incluindo inalação;
* Repetição do quadro ao consumir qualquer produto que contenha trigo (pão, bolos, massas);
* Atenção à anafilaxia induzida por exercícios físicos, quando os sintomas só ocorrem quando há o contato seguido de atividade física;
* Sintomas de pele, como urticária (foto) ou prurido, inchaço de face/outros locais, chiado, rouquidão, dificuldade para engolir ou respirar, tontura ou desmaio;
*Sintomas intestinais, como vômitos e diarreia intensa;
* Se houver qualquer sinal de dificuldade respiratória ou queda de pressão, considerar anafilaxia e procurar atendimento de emergência.

Ciência e Saúde
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