Visão do Direito

Ativos digitais e sucessão patrimonial: desafios e oportunidades na regulamentação brasileira e internacional

"Não é incomum identificar atualmente no patrimônio das pessoas, além dos bens tradicionais, outros como Cripto Ativos, NFTs (Non-Fungible Token), contas em plataformas digitais e outros bens imateriais"

Rafael Stupiello e Marcella Costa, sócio e advogada da área de planejamento patrimonial e sucessório -  (crédito: Divulgação)
Rafael Stupiello e Marcella Costa, sócio e advogada da área de planejamento patrimonial e sucessório - (crédito: Divulgação)

Por Rafael Stupiello e Marcella Costa* — O avanço tecnológico e a modernização da sociedade fizeram com que as pessoas deixassem de ter os seus patrimônios compostos única e exclusivamente por imóveis, ativos financeiros e veículos e passassem a compor o seu universo patrimonial também por bens digitais.

Ou seja, não é incomum identificar atualmente no patrimônio das pessoas, além dos bens tradicionais, outros como Cripto Ativos, NFTs (Non-Fungible Token), contas em plataformas digitais e outros bens imateriais. Há ainda os profissionais digitais, que monetizam perfis em redes sociais e canais em plataformas por meio de exibição de conteúdo, propaganda e, assim por diante, em razão do grande número de seguidores que possuem, de forma que que esses perfis/canais possuem expressão patrimonial relevante.

Assim é que, a existência cada vez maior de bens digitais levanta questões a respeito da sua sucessão, seja em razão da transmissibilidade desse patrimônio, seja pela possibilidade/permissão de acesso pelos herdeiros, uma vez que a legislação atual carece de regulamentação específica, criando um cenário de incerteza e exigindo soluções práticas para garantir a sucessão eficaz desses bens, enquanto não houver atualização legislativa sobre o tema.

O tratamento da sucessão de ativos digitais na legislação brasileira

O vigente Código Civil brasileiro (Lei nº 10.406/2002) não trata diretamente da sucessão de ativos digitais, até mesmo porque, quando entrou em vigor em 2002, a tecnologia não existia nos moldes atuais e muitos dos bens digitais hoje sequer existiam.

Assim, a premissa geral quanto à sucessão regulamentada no Código Civil é aplicada também aos bens digitais, por falta de regulamentação específica, o que gera algumas lacunas e dificuldades.

O art. 1.784 dispõe que, aberta a sucessão, ou seja, com o falecimento, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros. Trata-se do princípio da saisine, no qual entende-se automática a transmissão dos bens aos herdeiros, não podendo o patrimônio ficar acéfalo, sem titular.

Entretanto, os ativos digitais possuem características particulares que dificultam essa transmissão automática, por exemplo: 

Cripto ativos: a ausência de uma entidade central reguladora impede o acesso aos bens sem a chave privada do titular. Diferentemente de contas bancárias, que podem ser acessadas por meio de decisões judiciais, cripto ativos podem ser perdidos para sempre, caso as chaves privadas não sejam conhecidas.

Contas em plataformas digitais: redes sociais, serviços de e-mail e plataformas de armazenamento possuem políticas próprias sobre herança digital. Algumas permitem a nomeação de um contato herdeiro, enquanto outras proíbem a transferência da conta a fim de preservar a intimidade da pessoa.

NFTs e outros bens digitais: embora registráveis em blockchain, sua transferência pode enfrentar barreiras semelhantes às das criptomoedas.

A jurisprudência brasileira ainda é incipiente e apresenta entendimentos divergentes sobre o tema. Em alguns casos, juízes têm reconhecido o direito de herdeiros a acessarem contas digitais de falecidos, mas a ausência de uma regulamentação específica gera insegurança jurídica.

Lições da regulamentação internacional: MiCA e UFADAA

No cenário internacional, algumas jurisdições avançaram na regulamentação da sucessão de ativos digitais:

MICA (Markets in Crypto-Assets, União Europeia): embora não trate especificamente de sucessão, estabelece regras para custódia e transferência de cripto ativos, podendo servir de base para regulamentações futuras sobre sucessão digital.

UFADAA (Uniform Fiduciary Access to Digital Assets Act, EUA): assegura que após o falecimento do titular, o respectivo herdeiro pode administrar os ativos digitais, desde que previsto em testamento ou documento legal específico.

Tais modelos mencionados ilustram como se reinventaram ou, até mesmo, consideraram a importância de previsões normativas específicas, a fim de evitar a perda de bens digitais após a morte do titular, demonstrando assim uma preocupação crescente com a proteção e transmissão desses ativos no contexto digital.

Estratégias jurídicas para garantir a sucessão de cripto ativos

Como mencionado anteriormente, devido à atual ausência de regulamentação no ordenamento jurídico brasileiro, algumas estratégias podem ser adotadas para assegurar a sucessão de ativos digitais, visando proporcionar maior segurança ao titular e aos seus herdeiros:

Gestão prévia das chaves privadas: o armazenamento seguro das chaves privadas, seja em cofres digitais, seja com terceiros confiáveis, pode ser essencial. O uso de multisig wallets (carteiras com múltiplas assinaturas) pode facilitar a transferência de cripto ativos aos herdeiros.

Nomeação de herdeiros em exchanges: algumas corretoras já permitem que usuários indiquem herdeiros, reduzindo o risco de perda do patrimônio digital.

Testamentos: a inclusão de instruções detalhadas sobre ativos digitais em testamentos pode minimizar disputas e facilitar a sucessão. Contudo, o testamento público pode não ser a melhor opção para chaves privadas, devido ao risco de exposição.

Reforma do Código Civil

Importante mencionar, que recentemente foi apresentada ao Senado Federal, por meio do Projeto de Lei 4/2025, proposta de Reforma do Código Civil, que trata amplamente dos os bens digitais e a sua transmissão.

O texto sugere a possibilidade de inclusão de bens digitais na herança desde que tenham valor economicamente apreciável, trazendo uma definição do que se enquadraria em bens digitais: "Compreende-se como bens digitais, o patrimônio intangível do falecido, abrangendo, entre outros, senhas, dados financeiros, perfis de redes sociais, contas, arquivos de conversas, vídeos e fotos, arquivos de outra natureza, pontuação em programas de recompensa ou incentivo e qualquer conteúdo de natureza econômica, armazenado ou acumulado em ambiente virtual, de titularidade do autor da herança".

Ademais, o texto reformado propõe a vedação de acesso pelos herdeiros, salvo expressa disposição de última vontade, às mensagens privadas do autor da herança armazenadas em ambiente virtual.

Por fim, seria incumbido ao inventariante (ou qualquer herdeiro) informar ao juízo do inventário ou fazer constar na escritura pública a existência de bens digitais de titularidade do falecido.

Vê-se, portanto, que, se aprovado, teremos regulamentação mais específica sobre o tema, direcionando de forma mais segura a sucessão dos bens digitais.

Conclusão

A sucessão de ativos digitais é um desafio jurídico crescente, exigindo adaptação do direito sucessório tradicional. A ausência de regulamentação específica no Brasil contrasta com avanços em outras jurisdições, como a União Europeia e os Estados Unidos. Até que haja um marco legal específico, é essencial que titulares de ativos digitais adotem estratégias de planejamento sucessório para garantir a transmissão segura de seu patrimônio digital ou ao menos mitigar os riscos hoje existentes.

A regulamentação futura deve equilibrar segurança jurídica, privacidade e inovação, garantindo que herdeiros possam acessar bens digitais sem comprometer os princípios fundamentais do direito sucessório e da proteção de dados.

Sócio e advogada da área de planejamento patrimonial e sucessório*

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Por Opinião
postado em 03/07/2025 03:00
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