
Por Viviane dos Reis Ferreira* e Clarissa Figueiredo Lobo**— A análise dos dados apresentados no Justiça em Números 2024, divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), revela uma realidade inequívoca, ainda que incômoda para o cenário jurídico brasileiro: o Poder Judiciário está produzindo como nunca em sua história, mas, contraditoriamente, continua sendo engolido por um volume crescente de novas ações. Esse é um dilema que exige profunda reflexão.
Em um movimento sem precedentes recentes, foram registradas mais de 11 milhões de baixas processuais, o maior número alcançado nos últimos cinco anos. Contudo, o volume de novas entradas superou a impressionante marca de 11,2 milhões de processos, o que representa um crescimento superior a 51% desde 2020. O efeito imediato desse descompasso é a elevação do estoque processual em 4%, um verdadeiro paradoxo que desafia a lógica: quanto mais se julga e se finaliza, mais processos continuam a ingressar no sistema.
Esses números eloquentes evidenciam que a produtividade do Judiciário não é, de fato, o cerne do problema; ela é, na verdade, uma dolorosa consequência de uma falha em outra parte do sistema. A verdadeira questão reside na origem das ações. Muitas delas, infelizmente, são replicadas em massa, resultado direto de campanhas coordenadas de litigância abusiva que se valem da estrutura digital e de tecnologias avançadas para automatizar a judicialização em larga escala. Isso transforma o acesso à justiça em uma ferramenta de exploração, e não de efetivação de direitos.
Há, ainda, um dado silencioso e igualmente perturbador que emerge dessa análise: a lamentável ausência de tentativas reais e eficazes de solução pré-processual. O número alarmante de demandas que inundam as cortes é, em grande parte, um reflexo direto da pouca efetividade e do subaproveitamento de mecanismos essenciais como conciliações, serviços de atendimento ao consumidor (SACs), ouvidorias e outros sistemas extrajudiciais de resolução de conflitos. A constatação é clara: estamos tratando os litígios pela ponta do processo, quando o esforço deveria ser direcionado à sua raiz, à origem do problema.
É nesse cenário complexo e desafiador que ganha força e urgência a chamada Litigância Abusiva 5.0. Esse conceito representa um modelo preventivo e proativo, firmemente ancorado no uso estratégico de dados, inteligência artificial e redes sociais. Sua premissa é clara: identificar padrões de abuso e as articulações por trás deles antes mesmo que se transformem em processos judiciais. Escritórios de advocacia que já estão na vanguarda, implementando soluções de análise preditiva e cruzamento de dados, já demonstram a capacidade de identificar com precisão "clusters" de ações repetidas, o uso fraudulento de procurações antigas, CPFs com histórico massificado de demandas e, até mesmo, campanhas de judicialização coordenadas por meio de redes sociais.
Mais do que configurar um simples movimento de defesa institucional, essa abordagem representa uma mudança fundamental de mentalidade no universo jurídico. É um convite para sair da lógica meramente reativa, que aguarda o problema surgir para então tentar apagá-lo e ingressar definitivamente na era da antecipação estratégica, em que a prevenção se torna a palavra de ordem.
A análise aprofundada dos dados do relatório do CNJ é, portanto, um potente alerta para todos os envolvidos no ecossistema da Justiça. Mas, mais do que isso, é um convite irrecusável para a ação. Para advogados, juízes, reguladores e empresas, o caminho a ser trilhado é claro e unívoco: somente a prevenção baseada em tecnologia e uma cooperação institucional robusta e sinérgica será capaz de conter o iminente colapso provocado pela litigância em massa, garantindo a sustentabilidade e a eficácia do sistema de Justiça para as futuras gerações.
Sócia e diretora do Parada Advogados*
Advogada no Banco Bmg, com atuação em contencioso cível**
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