
Por Luís Gustavo Nicoli* — A recente decisão do Congresso Nacional de derrubar o veto presidencial ao projeto que desobriga aposentados por incapacidade permanente e beneficiários do BPC com doenças irreversíveis de se submeterem a reavaliações periódicas representa um avanço civilizatório na história da seguridade social brasileira. Essa medida não é apenas uma correção jurídica, mas uma reafirmação da dignidade humana como princípio basilar do Estado. Ao reconhecer a crueldade embutida na exigência de perícias regulares para pessoas com condições médicas definitivas, o Legislativo optou por colocar a empatia e a racionalidade administrativa acima do automatismo fiscalista.
Durante anos, milhares de brasileiros viveram sob o temor de terem seus benefícios suspensos por motivos puramente burocráticos, mesmo quando a ciência médica já havia atestado a irreversibilidade de seus quadros clínicos. Submeter essas pessoas a deslocamentos cansativos, espera em filas e constrangimentos frequentes para "comprovar" o óbvio não é controle, é humilhação. O sofrimento humano imposto por essas exigências periódicas revela uma face desumana da máquina pública, que passou a tratar com suspeita crônica aqueles que mais precisavam de amparo.
É legítimo que o Estado busque prevenir fraudes, mas é preciso diferenciar vigilância de abuso. A nova norma, agora com força de lei, não elimina a possibilidade de revisão em caso de suspeita fundamentada. O que se descarta é a revisão sistemática como regra automática, mesmo diante de incapacidades permanentes. Ou seja, o instrumento de controle permanece disponível, mas o uso indiscriminado dá lugar ao bom senso. Essa distinção é fundamental para preservar o equilíbrio entre a proteção do sistema e a garantia de direitos.
A mudança traz impactos práticos inegáveis. Quem vive com doenças progressivas, incuráveis ou altamente incapacitantes não terá mais a insegurança recorrente de ver sua fonte de sustento ameaçada por processos administrativos arbitrários. No caso das pessoas vivendo com HIV, a nova regra determina que as avaliações devem contar obrigatoriamente com a presença de um médico infectologista, garantindo respeito técnico e tratamento humanizado. São medidas que representam mais que alívio burocrático; elas reconhecem o valor da previsibilidade, do respeito e da estabilidade para quem enfrenta, diariamente, as limitações impostas por condições clínicas severas.
Não se pode ignorar, entretanto, os riscos de resistência institucional. O INSS pode atrasar a aplicação plena da nova lei ou adotar interpretações restritivas, o que pode gerar nova onda de judicialização. Para evitar esse cenário, será crucial que o Executivo publique com urgência uma regulamentação clara e objetiva, incluindo uma lista de condições médicas consideradas inequivocamente irreversíveis. A segurança jurídica que se busca com a norma só será alcançada se for acompanhada de sua implementação eficaz.
Por fim, a derrubada do veto é um símbolo importante. Mostra que o Congresso está disposto a agir em defesa da dignidade humana, mesmo diante de posicionamentos contrários do Executivo. Mais do que uma vitória legislativa, trata-se de um gesto de solidariedade institucional com os brasileiros que, por razões de saúde, já enfrentam o bastante. É também um recado: o parlamento não pode se omitir quando a burocracia se sobrepõe à humanidade.
Se há algo a aprender com esse episódio, é que nem todo controle é justo, nem toda perícia é necessária, e que a dignidade da pessoa humana deve ser o norte de qualquer política pública. O Brasil precisa deixar de tratar seus cidadãos vulneráveis como suspeitos em potencial e começar a enxergá-los como destinatários prioritários do cuidado estatal. Que essa conquista inspire outras, e que, aos poucos, o Estado brasileiro compreenda que exercer empatia também é uma forma de fazer justiça.
Sócio-fundador do escritório Nicoli Sociedade de Advogados. Advogado especializado em direito e processo do trabalho*
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