Entrevista

'Em todas as democracias,o Código Civil exige estabilidade', diz presidente da Fenia

Presidente da Fenia alerta que proposta de reforma do Código Civil, com mais de 1.200 artigos, cria insegurança jurídica e deveria ser arquivada em favor de um debate amplo e maduro na sociedade

Crítico do projeto em tramitação no Senado que altera o Código Civil Brasileiro, Tarcísio Kroetz, presidente da Federação Nacional dos Institutos dos Advogados do Brasil (Fenia), avalia que a proposta com mais de mil artigos é inoportuna porque cria desestabilização. Ele sustenta que mudanças como as pretendidas em área, como família, regulação de empresas e contratos, herança, propriedade, direito dos animais e direito digital devem ser precedidas de amplo debate. Na semana passada, o Senado instalou a Comissão Especial, presidida pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG). Mas o presidente da Fenia sustenta que o projeto deveria ser arquivado. A ideia foi divulgada na chamada "Carta de Salvador", depois que diversos representantes de institutos dos advogados se reuniram na cidade para defender uma reflexão madura sobre o tema.

O senhor afirma que o projeto que trata da Reforma do Código Civil, na verdade, cria um novo Código Civil. Qual é a sua preocupação?

Em todas as democracias, o Código Civil exige estabilidade. Ao disciplinar o contrato, a propriedade, a família, não há espaço para mudanças radicais. Justamente por isso, alterações sensíveis do Código Civil nos principais países, como a França e a Alemanha, são precedidas de ampla discussão nacional. Nada disso ocorre na proposta do senador Rodrigo Pacheco. A sociedade é surpreendida com uma mudança de aproximadamente 1.200 artigos. Isso, em realidade, representa um novo Código Civil.

Em que áreas há alterações mais radicais?

Há alterações radicais em todas as áreas, sobretudo por um texto legislativo aberto, ambíguo, que a pretexto de regrar a sociedade, confere aos juízes o poder de "criar direito" no caso concreto, resultando em grande insegurança. Nos contratos, apenas para citar um exemplo, o desrespeito a uma aberta "função social" pode levar à nulidade, ao desfazimento do negócio. Quem diz o que é função social de um contrato? A própria segurança do contrato desloca-se das partes para passar a residir no Poder Judiciário.

A sociedade se modernizou desde a edição do Código Civil atual, há 23 anos. Já não era hora de uma atualização?

A sociedade está sempre em constante transformação. A lei é a mesma, mas a interpretação é renovada. Para um Código Civil, 23 anos é um tempo curtíssimo. Um olhar para as grandes democracias indica isso. Na França, o Código Napoleão, de 1804, continua em vigor, com reformas tópicas e importantes. Na Alemanha, o Código Civil que entrou em vigor em 1900, igualmente continua em vigor, com a reforma substancial de apenas um dos livros. As reformas são cuidadosas e precedidas de enorme discussão na sociedade, algo totalmente diferente do que ocorre hoje no Brasil.

Na área, por exemplo, do direito digital, hoje há uma realidade que não existia em termos de relações pessoais e empresariais. Como vê esse capítulo no projeto em tramitação no Senado?

O universo digital diz respeito ao direito como um todo. Não apenas ao Código Civil. Trata-se de matéria que seria muito melhor versada em leis especiais, como no caso do Marco Civil da Internet ou da Lei Geral de Proteção de Dados. O livro do direito digital apresenta grave risco às liberdades comunicativas, recriando o direito ao esquecimento (em sentido oposto ao que decidiu o STF) e criando um direito à desindexação. Apenas essas duas regras têm o poder de reescrever a história do país na internet, retirando e desindexando conteúdos jornalísticos, permitindo que apenas uma leitura enviesada da história seja acessível.

No direito de família, há avanços, na sua opinião?

Não há, propriamente, avanços. Há a adoção de figuras controversas. Podemos citar, por exemplo, o chamado "direito dos animais" integrado em uma fluída compreensão de afeto familiar, sem apresentar solução concreta para os problemas práticos. A matéria da chamada "barriga de aluguel", como cessão de útero, é transferida ao Código sem qualquer discussão relevante na sociedade. Esses dois exemplos demonstram o risco de uma mudança abrupta sem o conhecimento e a discussão pela sociedade.

E nas relações conjugais?

Pode-se dizer o mesmo. O Código traz a possibilidade do divórcio unilateral por cartório. Essa ideia fragiliza tremendamente as relações conjugais. Passará a ser mais simples desfazer um casamento do que um contrato de prestação de serviços de telefonia.

Por que o senhor tem dito que as mudanças incentivam um "ativismo judicial exacerbado". Em que pontos?

Há diversas regras que, ao invés de trazer solução para os problemas brasileiros, remetem à construção da decisão ao Poder Judiciário. São as chamadas "cláusulas gerais". Ainda que isso já existisse no Código Civil de 2002, essas aberturas foram ampliadas enormemente, trazendo grande instabilidade para as relações sociais.

Acredita que o Congresso vai debater o tema com o cuidado necessário?

É o que a advocacia espera. E está atenta. Mas esse debate não pode ficar circunscrito ao pequeno grupo que elaborou as propostas. Precisa ser ampliado ao Brasil.

Se esse projeto for aprovado, avalia que a necessidade de atualização vai ser necessária em pouco tempo?

Certamente. Se o projeto fosse aprovado hoje, logo seria necessária uma nova reforma para corrigir os problemas que a nova Lei traria para a sociedade brasileira.

 


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