
Por Fábio Jogo* — Quando foi a última vez que você sentou com seus pais, irmãos ou filhos para falar abertamente sobre herança? Se a resposta é "nunca", você não está sozinho. No Brasil, discutir herança ainda é tabu e a maioria das famílias e das empresas familiares evita o tema, como se falar sobre o assunto pudesse atrair má sorte ou desrespeitar quem construiu o patrimônio. Ignorar essa conversa traz algumas consequências.
A proposta de reforma do Código Civil, apresentada recentemente pelo senador Rodrigo Pacheco, sugere algo que, na prática, já acontece: permitir que herdeiros negociem entre si, enquanto o titular dos bens está vivo, como será feita a divisão da herança. O Código Civil vigente, no artigo 2.018, já prevê a possibilidade de partilha em vida, por meio de doações feitas pelo titular do patrimônio. Mas a norma atual trata o tema de forma genérica e com pouco detalhamento, gerando insegurança jurídica. A reforma busca justamente preencher essa lacuna. Ainda assim, a reação imediata de muita gente à proposta foi de desconforto. "Herança em vida" soa, para muitos, como um convite à discórdia. Mas talvez o incômodo esteja menos na proposta e mais no espelho que ela nos oferece.
Preferimos tratar a herança como um problema distante, como se falar sobre ela fosse chamar a morte. Só que o fim chega. E o que não foi resolvido vira briga e desgaste. Cerca de 2,5% das pessoas que morrem no Brasil deixam um testamento registrado. E o processo de inventário, procedimento judicial para dividir os bens, pode consumir até 30% do valor total do patrimônio com impostos, taxas e honorários. Para empresas familiares, a situação é ainda mais delicada: cerca de 70% delas não sobrevivem à primeira sucessão. Em outras palavras, o trabalho de uma vida inteira pode desmoronar por falta de organização.
Mesmo assim, as famílias continuam evitando o tema. Muitas já até tentam organizar a herança antecipadamente, mas de maneira informal. O aumento recente nas escrituras de doação mostra que muitos buscam antecipar a partilha, só que sem segurança jurídica. Boa parte dessa resistência não vem da lei, mas da cultura. O principal obstáculo para o planejamento da herança no Brasil é o tabu. Falar sobre morte ainda soa como algo inadequado, mesmo quando o objetivo é proteger a própria família.
Mesmo globalmente, o silêncio domina. Uma pesquisa do HSBC mostra que somente 26% dos empresários ricos conversam sobre herança. Quando o tema é evitado, cresce o risco de decisões importantes ficarem para a hora mais difícil.
Outros países enfrentaram esse impasse com regras claras. França, Portugal e Espanha permitem que as famílias organizem, com antecedência, como será feita a divisão dos bens. Nesses lugares, é possível formalizar acordos com a pessoa ainda viva, desde que ela esteja consciente e os direitos dos herdeiros sejam respeitados.
No Brasil, a proposta segue essa lógica. Ela define situações específicas, como a possibilidade de antecipar doações entre filhos, dividir cotas de empresas ou permitir que um cônjuge abra mão da herança por meio de um acordo feito antes do casamento. E mesmo nesses casos, continua valendo a regra que garante uma parte mínima dos bens aos herdeiros diretos, como filhos e pais. Essa parte, chamada de legítima, corresponde à metade do patrimônio.
Mesmo com todos esses limites, há quem critique a proposta. Em parte, por receio de que os acordos sejam usados para pressionar idosos ou excluir membros da família injustamente. Mas esses riscos já existem hoje, justamente porque tudo é feito sem planejamento formal. A diferença é que, com regras claras, fica mais fácil impedir abusos. Em países que adotaram esse modelo, os acordos só têm validade se houver equilíbrio, transparência e participação direta do titular dos bens.
Planejar a herança não é um gesto frio. É um cuidado legítimo com quem fica e uma forma de garantir o destino do patrimônio construído ao longo da vida. Ainda ouvimos que "não é hora de falar disso", como se houvesse um momento certo. Mas quando a hora chega, é porque alguém partiu. E quem fica precisa resolver tudo no susto.
A reforma não resolve todos os problemas, mas quebra o silêncio. Obriga o país a conversar sobre algo que evitamos há décadas. E, talvez, isso já seja suficiente para mudar o jeito como lidamos com o fim. Porque herança não é só sobre bens. É sobre vínculos. E cuidar dela enquanto há tempo é, talvez, o jeito mais generoso de continuar presente após a partida.
Advogado, sócio do F. Jogo & Advogados Associados. Especialista em direito empresarial, com foco em holdings, doações, planejamento patrimonial e sucessório*
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