Entrevista

Gabinete Zero: magistrado cria método para eliminar acervo de 41 mil processos

Desembargador federal Eduardo Morais da Rocha, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região conta em entrevista como realizou o feito de zerar o acervo processual recebido

 Eduardo Morais da Rocha, desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região


 -  (crédito:  Arquivo Pessoal)
Eduardo Morais da Rocha, desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região - (crédito: Arquivo Pessoal)

Nascido em Brasília, o desembargador federal Eduardo Morais da Rocha, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região descobriu cedo sua vocação para o serviço público. Gradou-se em direito pela Universidade de Brasília (UnB), fez especialização na Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal, mestrado e doutorado na Universidade de Minas Gerais (UFMG) e pós-doutorado em ciências jurídico-políticas pela Universidade de Lisboa. Foi aprovado em vários concursos, como de procurador da Advocacia-geral da União (AGU), promotor de Justiça do DF e juiz federal. Em 26 de abril de 2022, tomou posse como desembargador federal.

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No cargo, obteve um grande feito. Enquanto muitos magistrados acumulam causas que herdam na promoção sem condições de equilibrar o trabalho com as novas e antigas demandas, Morais Rocha conseguiu zerar o estoque em seu gabinete, dando uma solução para 41 mil processos. Tudo isso sem uso de inteligência artificial e sem ajuda de uma equipe ampliada.

Ele adotou um modelo de gestão que chamou de "Gabinete Zero", que já é considerado um exemplo para outros desembargadores e tribunais.

Em três anos, desde que foi promovido a desembargador federal, o senhor conseguiu analisar todo o acervo que recebeu com mais de 41 mil que recebeu. Como isso foi possível?

A meta de zerar o acervo processual foi traçada desde o primeiro dia em que assumi como desembargador federal. Com planejamento rigoroso, reorganização do fluxo interno, definição de metas diárias e uso racional de tecnologia, foi possível enfrentar esse desafio. O projeto "Gabinete Zero" não é apenas um número, mas um modelo de gestão orientado para a eficiência, sem comprometer a qualidade das decisões e altamente replicável para outras instâncias e Tribunais de todo o Judiciário brasileiro.

A inteligência artificial auxiliou nesse processo?

Não. O projeto "Gabinete Zero" foi executado sem o uso de inteligência artificial, pois à época, ainda não havia autorização institucional para sua adoção no Tribunal. Todo o trabalho foi realizado com gestão estratégica, fluxo interno eficiente e dedicação exclusiva da equipe, sem qualquer convocação de juízes auxiliares. No entanto, as planilhas que foram desenvolvidas e utilizadas estão sendo customizadas para futura integração com ferramentas de IA, voltada, exclusivamente, à triagem e à gestão processual, sempre com supervisão humana.

Como a IA pode ajudar sem interferir na avaliação humana do magistrado?

A IA pode auxiliar em tarefas operacionais, como triagem e organização de informações, otimizando a gestão sem comprometer o juízo de valor. A decisão judicial é insubstituível e deve permanecer sob a responsabilidade exclusiva do magistrado. Qualquer ferramenta de IA deve atuar apenas como apoio técnico, nunca como substituto do raciocínio jurídico humano. Por isso, mesmo com eventual integração, todo material passará por dupla revisão humana antes de qualquer decisão.

Acredita que a quantidade de processos prejudica a qualidade dos julgamentos dos magistrados?

Sem dúvida, o excesso de processos impacta a qualidade e o tempo de resposta do Judiciário. O projeto "Gabinete Zero" nasceu justamente como resposta a esse problema estrutural. Quando o acervo está sob controle, o juiz tem mais condições de refletir, fundamentar e decidir com profundidade. Reduzir volume não é apenas meta de produtividade, é medida de responsabilidade institucional, desde que feita com qualidade nos julgados. Justiça tardia não é justiça efetiva.

Como busca equilíbrio entre a celeridade processual e a necessidade de decisões bem fundamentadas e justas?

Com organização, uso estratégico de tecnologia, gestão transparente e foco na decisão qualificada. A celeridade não pode ser confundida com pressa. No projeto "Gabinete Zero", cada decisão passa por um rigor técnico, mas é agilizada por mecanismos internos de análise coletiva e revisão por núcleo temático, de modo a ligar quantidade à qualidade dos julgados.

Hoje há uma crítica de parte da sociedade do excesso de judicialização dos conflitos. Como o senhor avalia essa questão?

A judicialização, muitas vezes, é reflexo da ausência de soluções efetivas por parte do Poder Público ou de canais adequados de diálogo social. O Judiciário acaba sendo o último recurso do cidadão. A crítica é legítima, mas também deve ser acompanhada de um debate sobre políticas públicas, educação para a cidadania e fortalecimento de mecanismos extrajudiciais que efetivamente facilitem o acesso à Justiça.

Qual a sua avaliação sobre soluções de conflitos por meio de conciliações e arbitragem?

A conciliação, a mediação e a arbitragem são mecanismos importantes para a pacificação social e a redução da sobrecarga do Judiciário. Em muitos casos, permitem soluções mais rápidas, menos onerosas e com maior protagonismo das partes. Acredito que o fortalecimento dessas vias alternativas contribui para um sistema de justiça mais acessível, plural e eficiente.

O senhor nasceu em Brasília e foi aprovado em vários concursos. O que o motivou a seguir a magistratura?

A magistratura sempre me atraiu pelo desafio de servir à sociedade por meio do direito. Brasília, sendo o centro das instituições nacionais, contribuiu para minha formação com esse olhar público e institucional. A vocação para resolver conflitos com base na Constituição e na justiça social me impulsionou a seguir essa carreira.

Há algum processo marcante em sua carreira que o senhor considere decisivo para sua formação como magistrado?

Sim, há processos, principalmente aqueles em que as partes estão em situação de hipossuficiência ou vulnerabilidade social, que me ensinaram que julgar vai além da letra fria da lei. Casos com forte impacto social, envolvendo saúde pública, causas previdenciárias e garantias fundamentais, reforçaram minha convicção de que o juiz precisa ouvir, ponderar e compreender o contexto humano por trás de cada demanda.

Acredita que o Judiciário hoje é o poder mais forte que os demais?

Não acredito em hierarquia entre os Poderes, mas em equilíbrio e harmonia (self-restraint). O Judiciário tem ganhado visibilidade porque atua em temas sensíveis, muitas vezes, por inércia dos outros Poderes. A força do Judiciário deve estar na sua independência, autocontenção e compromisso com a Constituição, nunca na sobreposição institucional.

A judicialização de políticas públicas tem aumentado. Como o senhor vê esse fenômeno?

Vejo com cautela. Por um lado, é um mecanismo legítimo de controle e proteção de direitos fundamentais. Por outro, revela falhas na formulação e execução das políticas públicas. O papel do Judiciário é garantir direitos individuais e sociais, mas sem substituir o gestor público. O equilíbrio está na atuação subsidiária e motivada por fundamentos jurídicos sólidos.

Qual conselho o senhor daria aos jovens que desejam seguir a carreira de juiz?

Estudem com disciplina — não somente matérias jurídicas, mas também outras áreas conexas ao direito, como sociologia, filosofia e economia — e cultivem empatia e senso de responsabilidade social. O juiz não deve apenas conhecer a lei, mas compreender a realidade do país. E, sobretudo, estejam prontos para inovar. O projeto "Gabinete Zero" é exemplo de que é possível transformar com gestão, tecnologias simples e coragem.

Que legado o senhor espera deixar quando se aposentar?

Quero deixar como legado um Judiciário mais eficiente, humano e comprometido com a justiça social. O projeto "Gabinete Zero" é mais que uma meta de produtividade: é uma visão de justiça acessível, célere, qualificada e de tutela efetiva. Se consegui mostrar que é possível inovar dentro da magistratura com o que já temos, sem aumento de gastos, já me dou por satisfeito.

 


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postado em 25/09/2025 05:31
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