
Por Gabriela Alves* — A tecnologia alterou a forma como as pessoas se relacionam, armazenam informações e constituem patrimônio. Fotos, contratos, moedas virtuais, senhas e perfis em redes sociais passaram a integrar o acervo das pessoas, criando um desafio ao direito sucessório: o tratamento jurídico dos bens digitais.
Recentemente, o STJ enfrentou o tema: a herdeira solicitou o acesso aos dados nos dispositivos eletrônicos da mãe, sustentando que poderiam existir informações patrimoniais relevantes nos iPads e iCloud.
Com a negativa do juízo de primeiro grau em oficiar a Apple, a controvérsia chegou à 3ª Turma do STJ, que entendeu que o acesso aos bens digitais depende de um incidente processual específico de identificação, classificação e avaliação de bens digitais.
O fundamento adotado pela maioria aponta para a necessidade de preservar a intimidade e os direitos da personalidade do falecido e de terceiros. Diante da ausência de previsão legal e da complexidade técnica do tema, o incidente funcionaria como um instrumento para equilibrar o direito à herança com a proteção da esfera privada e a atuação de um "inventariante digital". Nomeado pelo juiz, o profissional deveria identificar e relatar os bens digitais, cabendo ao magistrado decidir quais seriam transmissíveis.
Embora a posição do colegiado busque oferecer segurança jurídica, o entendimento traz preocupações legítimas. O voto divergente, do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, propõe uma leitura mais próxima aos princípios do direito civil, especialmente o da sucessão universal previsto no artigo 1.784 do Código Civil.
Segundo o ministro, condicionar o acesso dos herdeiros a um incidente processual autônomo cria uma barreira desnecessária, burocratiza o inventário e afronta a lógica da transmissão imediata da herança. Afinal, se o patrimônio físico é transmitido aos sucessores, não haveria razão jurídica para tratar os bens digitais de forma distinta.
O argumento de que o acesso poderia violar a intimidade não justifica um regime processual especial. A proteção à privacidade já é assegurada pelo segredo de justiça e pelos institutos do abuso de direito e da responsabilidade civil. Caso um herdeiro exceda seus limites, o ordenamento dispõe de meios adequados para coibir e reparar tais condutas.
O voto vencido ainda ressalta um ponto fundamental: os herdeiros são os mais legitimados a gerir e filtrar o acervo digital do falecido. São eles que possuem o vínculo familiar, o interesse na preservação da memória e o dever de respeito à intimidade do ente querido. Transferir essa atribuição a um terceiro significa afastar o núcleo familiar de um papel que lhe é naturalmente atribuído pelo direito das sucessões.
A criação de um incidente processual para tratar dos bens digitais corre o risco de transformar o inventário em um procedimento desconectado da realidade, infringindo os princípios da cooperação e da celeridade. O direito, por essência, deve ada; adaptar-se às transformações sociais sem se perder em formalismos.
A solução mais equilibrada é aquela defendida no voto divergente: os bens digitais devem seguir a regra geral da sucessão universal, sendo transmitidos aos herdeiros da mesma forma que os bens materiais. O juiz do inventário poderá, caso necessário, instaurar incidente apenas para fins de identificação e avaliação, sem impor uma nova figura processual. Essa interpretação preserva a coerência do sistema, evita entraves desnecessários e reafirma que o direito deve servir à vida — e não o contrário.
Advogada da área cível do Diamantino Advogados Associados*
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