
Por Gabriela Gonzalez Pinto* — O feminicídio, em sua face mais brutal, é a manifestação extrema de uma estrutura social que, historicamente, tolera e normaliza a violência de gênero. A violência contra a mulher não é um fenômeno isolado e repentino; ela é um contínuo, uma "espiral da violência" que frequentemente começa de forma sutil, com ciúmes, controle e ameaças, e culmina na tragédia. É crucial, portanto, que o sistema de justiça não apenas reaja ao crime consumado, mas atue de maneira estratégica e antecipada para interromper esse ciclo. O Legado Patriarcal e a Luta por uma Vida Livre de Violência
Para compreender a profundidade do feminicídio, é preciso reconhecer que vivemos sob o legado de uma cultura patriarcal arraigada na história brasileira, onde a violência contra a mulher foi, por muito tempo, socialmente tolerada. As Ordenações Filipinas, vigentes de 1603 a 1830, autorizavam expressamente a violência do marido contra a esposa com comportamentos que se desviassem da moralidade da época.
Essa mentalidade de controle sobre a mulher persistiu. O Código Penal de 1890, por exemplo, punia a mulher adúltera com prisão, mas o homem adúltero só era punido se sustentasse uma concubina ("teúda e manteúda"), isentando-o em casos de relação sexual fortuita. Casos emblemáticos, como o de Ângela Diniz (assassinada em 1976) , demonstram como a "legítima defesa da honra" funcionava como uma tese jurídica que culpabilizava a vítima e absolvia o agressor. Embora a Lei Maria da Penha (2006) e a Lei do Feminicídio (2015) tenham sido avanços legislativos essenciais e o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha declarado a inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra (ADPF 779, em 2023) , o controle masculino ainda teima em persistir na memória social.
Nesse aspecto, a Comissão de Prevenção e Combate ao Feminicídio enviou a Nota Técnica nº 01/2024 (Anexo VI) ao procurador-geral de justiça , que subsidiou a atuação do MPDFT como amicus curie no julgamento do Tema 1087 do Supremo Tribunal Federal (ARE 1225185/MG). Nesse julgamento, o plenário do STF decidiu pela impossibilidade de se conceder clemência a feminicidas levados a júri popular, uma decisão considerada emblemática para o combate à cultura de tolerância à violência contra a mulher. Portanto, a atuação institucional para combater a violência de gênero deve ser robusta, não se limitando ao âmbito criminal, mas promovendo a igualdade e a proteção em todas as esferas.
O Projeto Caliandra: aprimorando a Gestão de Risco no DF
Diante da urgência de qualificar a resposta do sistema de justiça, a Comissão de Prevenção e Combate ao Feminicídio do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) instituiu o projeto-piloto Caliandra. Esse projeto é uma ferramenta estratégica de gerenciamento de risco e acompanhamento das mulheres em situação de violência doméstica.
O Caliandra foi inspirado no Protocolo Girassol , desenvolvido pelo Ministério Público do Rio Grande do Norte (MPRN). Assim como o Girassol, o Caliandra concentra-se no acompanhamento de mulheres que tiveram suas medidas protetivas de urgência (MPUs) descumpridas, buscando monitorar a evolução do risco, acionar a rede de proteção e exercer uma busca ativa na defesa dos direitos das vítimas.
A importância de projetos como o Caliandra reside no fato de que as medidas protetivas revelam-se de grande potencial preventivo, especialmente quando aliadas a programas e políticas públicas. O projeto-piloto Caliandra, implementado na Promotoria de Justiça de Defesa da Mulher no Recanto das Emas, busca aprimorar o acompanhamento e a gestão de risco, especialmente nos casos de descumprimento de MPUs. Ele se utiliza da experiência acumulada para evitar revogações precipitadas de medidas essenciais e para inserir as mulheres nos programas e políticas públicas especializadas, como Viva-Flor, DMPP ou Provid.
O nome "Caliandra", uma flor resistente e nativa do Cerrado, simboliza a força e a resiliência das mulheres do Distrito Federal. O projeto representa um compromisso do MPDFT em não apenas combater o feminicídio, mas em promover uma cultura de respeito e em oferecer a estrutura de proteção de que as mulheres precisam para reconstruir suas vidas com segurança e dignidade.
O combate ao feminicídio é uma exigência constitucional e uma missão que perpassa a atuação de toda a sociedade. A existência de iniciativas como o Caliandra, fundamentadas em dados, estratégias e parcerias, é um passo fundamental para transformar a realidade da violência de gênero em nosso país.
Promotora de Justiça, mestre em direitos humanos pela Univerdade Pablo-Olavide — Sevilha, Espanha*
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