Visão do Direito

Função constitucional e disfuncionalidade institucional

"Nos últimos anos, esse equilíbrio tem sido tensionado. O STF tem sido chamado, e em muitos casos tem assumido, um papel de densificação normativa que ultrapassa a lógica clássica da jurisdição constitucional"

Por Marcio Machado Valêncio* — O constitucionalismo moderno não se sustenta apenas na proclamação de direitos ou na existência formal de instituições. Ele se organiza a partir da atribuição funcional de competências, deveres e limites a cada poder constituído. A Constituição não define apenas quem decide, mas como e para que se decide. Quando as instituições se afastam dessas funções, o problema deixa de ser político e passa a ser, essencialmente, constitucional.

Nesse desenho, o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional ocupam posições centrais e complementares. Ao STF cabe a guarda da Constituição, o controle de constitucionalidade e a proteção dos direitos fundamentais, sobretudo diante de omissões ou desvios dos demais poderes. Ao Congresso incumbe a função legislativa em sentido próprio: deliberar politicamente, produzir normas gerais e representar a pluralidade social. O equilíbrio entre essas funções é condição de normalidade constitucional.

Nos últimos anos, esse equilíbrio tem sido tensionado. O STF tem sido chamado, e em muitos casos tem assumido, um papel de densificação normativa que ultrapassa a lógica clássica da jurisdição constitucional. Decisões com efeitos estruturais e conteúdo normativo amplo tornaram-se frequentes, muitas vezes como resposta a omissões legislativas prolongadas. Trata-se de uma reação compreensível, mas que não é neutra em termos institucionais.

A jurisdição constitucional foi concebida como instância de exceção qualificada, não como mecanismo ordinário de formulação normativa. Quando a exceção se converte em rotina, altera-se a própria natureza da função jurisdicional. A Corte deixa de atuar prioritariamente como guardiã de limites e passa a operar como instância permanente de conformação do espaço normativo, com impactos diretos sobre previsibilidade e estabilidade do sistema.

Esse deslocamento funcional está ligado à crise de desempenho do Congresso Nacional. A fragmentação decisória, a dificuldade de deliberação substantiva e a substituição do debate legislativo por soluções negociais enfraquecem sua missão constitucional. Quando o Legislativo deixa de decidir, cria-se uma lacuna institucional que tende a ser preenchida por outros poderes.

Do ponto de vista constitucional, a separação de poderes é também um princípio de funcionalidade. Cada poder existe para cumprir uma tarefa específica no equilíbrio do sistema. A recomposição da normalidade institucional exige avaliar STF e Congresso pela fidelidade às suas funções constitucionais. Sem isso, a Constituição permanece formalmente íntegra, mas funcionalmente fragilizada.

Advogado, pós-graduado em direito penal empresarial, em direito corporativo e em direito do trabalho*

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