ENTREVISTA

Innocence Project e a reconstrução da verdade no caso Carlos Edmilson

Carlos Edmilson foi acusado injustamente de ser o "maníaco da Castelo Branco"

Carlos Edmilson (centro), com a mãe e a equipe do Innocence Project Brasil -  (crédito: Divulgação/Innocence Project Brasil)
Carlos Edmilson (centro), com a mãe e a equipe do Innocence Project Brasil - (crédito: Divulgação/Innocence Project Brasil)

No quarto caso desta série de reportagens, um inocente havia sido condenado não por um único crime, mas por 10. Carlos Edmilson foi acusado de ser o "maníaco da Castelo Branco", um estuprador em série que, armado com uma faca, atacava e, em alguns casos, roubava mulheres na Rodovia Castelo Branco, em São Paulo. A falsa acusação resultou em 10 condenações por estupro e roubo, crimes que ele jamais cometeu, e 170 anos de prisão.

Fique por dentro das notícias que importam para você!

SIGA O CORREIO BRAZILIENSE NOGoogle Discover IconGoogle Discover SIGA O CB NOGoogle Discover IconGoogle Discover

De acordo com a advogada Flávia Rahal, diretora e uma das fundadoras do Innocence Project Brasil, responsável pelo caso, o nome de Edmilson surgiu nas investigações nos fatídicos álbuns de suspeitos. "Anos antes dos fatos, ele teve, se não me engano, um episódio anterior no qual foi apontado como possível autor de um crime, mas sequer virou processo ou, se virou, resultou em absolvição. Foi por isso que havia uma foto dele nos arquivos da polícia", conta.

Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular

Foi justamente um episódio em que Edmilson foi absolvido que despertou a desconfiança de que ele pudesse ser inocente em um segundo caso. Flávia Rahal relembra que o caso chegou ao Innocence Project por meio do promotor de Justiça Eduardo Querobim que, ao tomar conhecimento de uma dessas absolvições, na qual um exame de DNA havia excluído Carlos Edmilson como autor do crime, passou a se questionar se não teria, em algum momento, pedido a condenação de um inocente.

"Nós nos encontramos em uma audiência sobre outro caso do projeto, e ele me pediu para rever um dos casos do Carlos Edmilson. Como ele, como promotor, já não tinha mais atribuição para atuar nesse processo, ele me procurou e pediu que o projeto revisasse o caso", afirma Flávia.

Ao analisar os autos, a equipe percebeu que não se tratava de apenas uma ação penal, mas de 10. No total, Carlos Edmilson havia sido processado doze vezes: absolvido em duas e condenado nas outras denúncias. Assim, o Innocence Project iniciou a análise das condenações.

Logo, descobriram que todas se baseavam exclusivamente no reconhecimento feito pelas vítimas, cada uma em seu próprio caso. Além disso, notaram que havia um efeito em cadeia: uma condenação servia de fundamento para a seguinte, reforçando a narrativa de que ele seria um "maníaco" ou "estuprador em série".

No entanto, ao examinar os processos mais a fundo, percebeu-se que, em nenhum dos 10 casos, existia qualquer outra prova além dos reconhecimentos. Segundo Brian Alves Prado, advogado voluntário do projeto, a equipe passou então a investigar como esses reconhecimentos haviam sido realizados. "Verificamos que todos apresentavam falhas graves, sem observar as regras previstas no Código de Processo Penal", lembra.

A advogada Flávia Rahal destaca que, quando o caso chegou ao projeto, Carlos Edmilson já estava preso havia sete anos. "Os fatos haviam ocorrido entre 2010 e 2012. Então, imagine pedir a alguém que se lembre do que estava fazendo em uma quinta-feira, às 8h30 da manhã, nove, oito anos antes. Quem lembraria? Era praticamente impossível conseguir um álibi ou uma prova material tantos anos depois", destaca.

No entanto, os advogados perceberam que, em cinco dos 10 casos, havia sido coletado material genético das vítimas, porém os exames de DNA nunca haviam sido realizados. Surgiu, então, a dúvida: ainda seria possível produzir esses testes? Diante disso, o Innocence Project entrou em contato com o Instituto de Criminalística de São Paulo, que informou poder realizar os exames desde que o pedido fosse feito por uma autoridade pública. O projeto, então, procurou o promotor de Justiça Eduardo Querobim que se dispôs a ajudar.

Meses depois, os resultados dos exames chegaram: foram realizadas cinco análises de DNA, todas com resultado negativo para Carlos Edmilson e quatro com resultado positivo para outro homem. "A partir desses resultados, a convicção sobre a inocência de Carlos Edmilson se fortaleceu significativamente", relatam os advogados. "A comparação do material genético dele com o Banco Nacional de Perfis também foi decisiva: não houve nenhuma correspondência com outros casos de violência sexual", afirmou Brian.

Segundo Flávia Rahal, a estratégia foi iniciar o processo de reversão das condenações de cada caso isoladamente, o primeiro deles por meio de um habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça, em um caso no qual o reconhecimento feito pela vítima era totalmente falho. "O procedimento de reconhecimento não seguiu nenhuma regra legal. Em um dos casos, sequer houve reconhecimento em juízo, apenas uma identificação por fotografia na delegacia. Era uma condenação extremamente frágil, sustentada unicamente nesse reconhecimento, e, além disso, o exame de DNA comprovava que o autor não era o Carlos Edmilson. Esse primeiro habeas corpus foi concedido", explica.

Ela detalha que o segundo pedido, também de habeas corpus e com características semelhantes, foi igualmente acolhido pelo STJ. "Ou seja, de dez condenações, já tínhamos conseguido demonstrar em dois casos que o Carlos Edmilson não era o autor."

Em seguida, a equipe entendeu ser importante apresentar revisões criminais em três dos casos nos quais o exame de DNA afastava a culpa de Carlos Edmilson. "Embora os reconhecimentos também fossem problemáticos, haviam sido formalizados de forma mais adequada que os dois primeiros. Por isso, optamos por ingressar com revisões criminais no Tribunal de Justiça de São Paulo", conta Flávia.

De acordo com ela, cada uma dessas revisões tratava das irregularidades nos reconhecimentos, da ausência de provas de culpa e dos resultados das análises genéticas. "Conseguimos três revisões criminais favoráveis, somando cinco decisões — entre o STJ e o TJ-SP — que reconheceram a inocência dele em cinco casos distintos. Essas absolvições já mostravam que um grande equívoco havia ocorrido. O homem que vinha sendo apontado como um criminoso em série, na verdade, era inocente", afirma.

Flávia explica que, na sequência, o projeto passou a atuar na sexta ação penal, a primeira sem exame de DNA. "Levamos ao STJ todo o histórico do caso, mostrando como um reconhecimento mal-feito levava ao outro. Em alguns episódios, três mulheres chegaram a fazer o reconhecimento juntas, e no caso de duas delas Carlos já havia sido absolvido", lembra.

Sobre essa etapa, ela destaca a importância da decisão do ministro Reynaldo Soares da Fonseca. "Foi uma decisão muito técnica e sensível. O ministro reconheceu que as últimas condenações haviam sido influenciadas pelo rótulo de 'culpado' atribuído a Edmilson nos processos anteriores", conta.

"A partir do momento em que se comprovou a inocência dele nos primeiros casos, não fazia sentido manter as demais condenações baseadas apenas em reconhecimentos frágeis e induzidos, sem qualquer outra prova", acrescenta. "Com isso, conseguimos também o sexto habeas corpus e, na sequência, os quatro últimos, todos seguindo a mesma linha de argumentação."

Em 15 de maio de 2024, após quatro anos de trabalho do projeto e 12 anos de prisão, Carlos Edmilson foi oficialmente inocentado. "Quando demos a notícia de que o décimo caso havia sido revertido e que ele estava, enfim, reconhecidamente inocente, foi um momento de enorme emoção", relembra Flávia.

A advogada conta que durante os 12 anos de prisão, foi a mãe, Ana Maria da Silva, quem o sustentou emocionalmente: uma mulher simples, que gastava o dinheiro do Bolsa Família para visitá-lo a quilômetros de distância e que, contra tudo e todos, manteve a fé na inocência do filho. Mas a retomada da vida não é fácil. Depois de 12 anos preso e acusado injustamente de 12 estupros, ele segue batalhando, trabalhando e tentando reconstruir sua vida, ainda lidando com as marcas emocionais e físicas desse período, de acordo com os advogados.

  • Google Discover Icon
postado em 13/11/2025 06:00 / atualizado em 13/11/2025 07:29
x