Festival de Cinema

Confira a crítica do filme de amor que abriu o Festival de Brasília

Sensibilidade e firmeza de objetivos dão o norte no primeiro filme exibido na programação do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

Ricardo Daehn
postado em 16/12/2020 09:54
Um amor digno de ser relíquia de antiquário embala a narrativa do documentário 'Espero que esta te encontre e que estejas bem' -  (crédito: Felipe Fernandes/ Divulgação)
Um amor digno de ser relíquia de antiquário embala a narrativa do documentário 'Espero que esta te encontre e que estejas bem' - (crédito: Felipe Fernandes/ Divulgação)

Sim, todo amor é sagrado

Há um personagem no documentário Espero que esta te encontre e que estejas bem que levanta a lebre de um passado invejável: na vida, foi de uma geração que acompanhou passagens do dirigível Zeppelin e do cometa Halley; testemunhou a ida do homem à lua; não experimentou do dissabor de vivenciar alguma guerra e, de quebra, ainda gozou do prazer de uma virada de milênio. Comum a todo o relato dele é a presença do amor pela vida. No filme assinado pela diretora Natara Ney, pesa o protagonismo de um casal anônimo — Oswaldo e Lúcia —, embevecido também pela vida, mas otimizada pelo amor correspondido.

Espero que esta te encontre e que estejas bem traz a pernambucana Natara Ney construindo uma relação de amor com a forma de um afeto pinçado da descoberta de um lote de mais de centena de cartas entre Oswaldo e Lúcia. Ele, aeroviário da Panair, morador ocasional de uma pensão carioca na Rua do Ouvidor; ela, uma moça adepta de modismos dos penteados armados à base de bombril, e que viu cumprir o amor evidenciado pela precisão de uma vidente que atravessou o seu caminho.

Com uma montagem muito afivelada, o filme persegue a ideia de dar corpo à matéria descrita, em parte, por um gaúcho presente na narrativa. Ele aponta a racionalidade na negociação de fragmentos da vida que organizados, desembocam na inteligibilidade e produzem os "gatilhos de memórias". No compêndio de emoções decifradas por Natara Ney -- o amor, "uma escolha" --, eclipsa atos como as transas,
definidas "pelo instinto". O documentário vem ancorado no "tijolo da saudade" de uma era em que, como reforça, "os sentimentos eram mais lentos e mais profundos".

Na jornada do longa, sustentado pela curiosidade de saber do destino de Oswaldo e Lúcia — que, a partir de 1952, se corresponderam em romance epistolar —, abre-se um leque de poética que relativiza substantivos como longe e distância, interpretados, pela ordem, como potências de matemática e de sentimento. Pipocam relatos confidenciados por protagonistas que exaltam "um tempo em que meu corpo era tua casa", entre outras poéticas.

Saudades, retribuições amorosas, desmedidas estimas e delicadeza foram enviadas num circuito de paquera afirmado entre missiva de Campo Grande (da mato-grossense Lúcia) e do Rio de Janeiro. Nas pistas que derivam do amor do casal central, Natara Ney esbarra com a riqueza emocional de coadjuvantes que "virgulam" o caminho deste amor.

Na atual era do "deletável", a diretora reconhece a voz de quem organizou memórias em traiçoeiros disquetes, remodela, por exemplo, os conceitos da senhora que lembra da época em que "andar de bicicleta não era para mulher" e registra a aura das investidas em cinemas de rua como o Alhambra, apinhado da neblina dos desejos contidos pelos namoriscos de juventude. Ao invadir o "ninho de amor" de Oswaldo e Lúcia, o filme desafia a ideia de que "o romantismo está acabando", como pontua um dos personagens. Os boleros e serestas da era das mãos coladas captadas por imagens de Rolleiflex resistem à catalogação de antiquário. O filme de Natara Ney revê valores, e , mais do que recuperar, restaura uma ode ao amor. Cinema com maior plenitude? Difícil encontrar... (####)

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