Miguel Matos era leitor de Machado de Assis desde a adolescência. Em 2008, o hoje advogado e jornalista escreveu o primeiro trabalho sobre o Bruxo de Cosme Velho, no centenário da morte do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas. Ficou impressionado com a quantidade de personagens e de termos jurídicos na vasta produção machadiana e resolveu compendiar as referências esparsas em uma obra. Daí nasceu Código de Machado de Assis (Ed. Migalhas), em que propõe um passeio despretensioso e bem-humorado pelos romances, contos e crônicas do nosso mais atilado escriba. O capítulo dedicado à traição (ou suposta traição de Capitu), com Escobar, o amigo de Bentinho, em Dom Casmurro, é, significativamente, intitulado "Embargos de terceiros".
A mirada oblíqua, dissimulada e irônica levou à falsa interpretação de que Machado seria alienado das questões sociais. Mas, como observa o ministro do STF Luís Roberto Barroso, no prefácio: “Se algumas de nossas lideranças atuais fossem chegadas à leitura, não tenho dúvida de que, postumamente, acusariam o nosso imortal escritor de comunista”. E, nesta entrevista ao Correio, Miguel Matos fala sobre as migalhas jurídicas na obra de Machado e da atualidade de sua visão de justiça.
Entrevista / Miguel Matos
Machado de Assis não tinha formação jurídica. Qual a relação dele com o direito?
De fato, Machado de Assis não tinha formação jurídica. Aliás, ele não tinha formação alguma. Era um verdadeiro autodidata. No entanto, vê-se pelas obras que ele tinha grande interesse pelas ciências jurídicas. Nas crônicas, sobretudo, vê-se um escritor com noção perfeita dos princípios jurídicos. Isso se deve, a meu ver, por três motivos. Primeiro, que ele era um funcionário público que lidava com questões de direito. Segundo, que ele tinha, entre os amigos, muitos bacharéis em direito. E, por fim, uma inata vocação.
As referências de Machado ao direito são migalhas ou são algo que perpassa a obra de uma maneira mais ampla?
Certamente as referências de Machado de Assis ao direito vão além de simples adereços. Há mais de 200 personagens ligados ao direito na obra de Machado, e, em boa parte das crônicas, ele trata de questões eminentemente jurídicas. Em muitas das vezes, ele critica os advogados, seja pela falta de preparo técnico (há o advogado que ignorou o direito até a morte), seja pela terminologia empolada, melhor dizendo, o bom e velho “juridiquês”. Mas o mais importante na obra talvez seja o fato de que há uma crítica social, de que se buscava o título de bacharel sem os motivos verdadeiros. Uns personagens queriam o diploma como se fosse uma relíquia, outros buscavam cargos políticos, e ainda há aqueles que queriam a carta de bacharel para conseguir um casamento vantajoso.
Até que ponto é possível afirmar que o estilo machadiano é jurídico?
Além das duas centenas de personagens jurídicos, há no texto machadiano inúmeras metáforas jurídicas. Como se não bastasse, Machado escrevia frases sintéticas, que expressavam comandos. Eram como os caputs das leis e códigos. Aliás, um estudioso de Machado já disse que ele escrevia num estilo seco, parecido com o Código Civil. Por tudo isso, a conexão Machado e direito é evidente e salta aos olhos quando olhamos a obra sob esse prisma.
Qual a importância dos embargos de terceiro na obra machadiana?
Eu digo que Machado de Assis deixou senhas nas suas obras. A bem da verdade, os estudiosos afirmam isso há tempos, pois a obra machadiana é muito autobiográfica. Mas o é de uma maneira muito bem elaborada, de modo que é preciso conhecer a fundo a história do escritor para notar em quais momentos há linhas de autobiografia. O que ouso acrescentar é que ele também deixou senhas jurídicas para desvendarmos alguns enigmas. Uma é exatamente a terminologia jurídica “embargos de terceiro”. E ela se mostra importantíssima para desvendar o maior mistério da literatura brasileira. Para quem não sabe, “embargos de terceiro” é o nome do instrumento jurídico pelo qual alguém, que vê algo sendo disputado, quer entrar na demanda para reclamar sua posse. Como exemplo, João e José estão disputando a posse de uma casa, e Manoel entra no processo (com embargos de terceiro) para dizer que a casa é sua.
Sob o prisma da ciência jurídica, qual o veredito: Capitu traiu ou não traiu Bentinho em Dom Casmurro?
A traição ou não de Capitu era uma dúvida que atormentava os leitores machadianos. Antes de explicar como trago a resposta peremptória para essa questão, é preciso notar que a traição ou não é uma discussão ultrapassada do ponto de vista moral e penal. Neste último ponto, frise-se que não existe mais o anacrônico tipo penal do adultério, de maneira que sob o enfoque penal não há mais sentido a discussão. Assim, o debate se circunscreve à seara literária. E o grande equívoco que cometíamos era procurar a resposta para a questão no ciúme doentio de Bentinho. Mas o fato é, por mais que não se queira dizer isso, Capitu, traiu, sim, Bentinho, com o melhor amigo, Escobar. E onde está a resposta? Está justamente no capítulo intitulado "Embargos de terceiro". Machado tinha dado esse nome a um capítulo de um livro anterior, A mão e a luva. Lá, a metáfora era evidente, um terceiro pretendia a mão da personagem. Em Dom Casmurro, por mais que os personagens Bentinho e Escobar estivessem tratando de uma questão do direito (afinal, Bentinho era advogado de Escobar), há a senha jurídica deixada por Machado de Assis para mostrar que Escobar era o terceiro reivindicando a posse, no caso, a “posse de Capitu”. Basta reler o capítulo com esse enfoque que tudo fica claro. Recomendo isso.
Machado é considerado, por muitos, um alienado das questões sociais. Qual a visão dele, sobre as questões sociais (a escravidão, o voto feminino, as desigualdades sociais, o racismo) a partir da abordagem jurídica de seus escritos? Se vivesse em tempos de redes sociais, Machado seria chamado de comunista, como sugere o ministro Barroso no prefácio?
Não dá para ler Machado de Assis e procurar ali um escritor panfletário. Mas isso não significa que ele era um alienado. Longe disso. Ele foi um homem do seu tempo, atravessando e vencendo imensas dificuldades. As questões políticas estão presentes em sua obra de uma maneira estética. As críticas, e há muitas delas, estão escamoteadas com sua magistral ironia. E como ressalto apenas as questões jurídicas, o que se vê ali é um Machado progressista, fato que bem notou o ministro Barroso com o prefácio que muito me honra. E, de fato, a julgar pelas nossas atuais lideranças, se estas fossem dadas à leitura, chamariam Machado de Assis de comunista.
Parece que Machado não tinha uma ideia muito lisonjeira dos advogados em sua obra. Em sua interpretação, por que isso ocorre?
Acredito que a crítica de Machado aos advogados era pelo fato de que ele mesmo queria ter sido um bacharel, e não ter podido frequentar uma faculdade. E muitos dos bacharéis com os quais ele tinha contato, eram bacharéis apenas no título, sem a mínima vocação para as letras. Ou seja, embora ele critique os bacharéis, o que se vê é uma adoração dele pelas ciências jurídicas, e uma admiração pelo direito.
Qual visão de justiça e de liberdade é possível depreender da leitura de Machado sob o prisma jurídico? Que lições essa leitura nos traz para o momento dramático que vivemos?
Interessante transportarmos Machado para os dias de hoje. Há uma similaridade muito grande no Rio de Janeiro de Machado com Brasília de hoje. Abstraindo as diferenças naturais, vejamos as semelhanças: Machado foi um escritor que mal saiu do Rio de Janeiro. Mas seus personagens são de vários pontos do Brasil, desde o Ceará, até o Rio Grande do Sul, passando por inúmeros Estados. E assim também é a cidade de Brasília, onde se encontram pessoas das mais variadas origens. Machado era como um brasiliense, assistindo de perto essa mistura de pessoas vindas de vários pontos do país. São esses os personagens de seus livros. E, como se não bastasse, ele era funcionário público federal. Inicialmente num cargo menor, chegando a diretor de secretaria do ministério, que hoje seria o Ministério da Agricultura. Por um tempo ele foi também chefe de gabinete do ministro. Ou seja, um cidadão como tantos que há em Brasília. E na obra machadiana, a burocracia pública também está presente, pois esse era seu dia a dia.
Quais as consequências dessa condição?
Imaginando agora Machado como um funcionário público federal, sem estabilidade, e sem ter recebido uma herança, bem se pode entender por que seus pontos de vista políticos não são evidentes. Mesmo assim, ele os coloca, usando a ironia como arma. Sob o prisma jurídico, a lição que Machado de Assis nos lega é acerca da liberdade de uma forma ampla. Ele fala de liberdade de voto, liberdade de religião, igualdade de gênero, critica a escravidão, condena a violência policial, ou seja, princípios e valores que demostram, de modo inequívoco, que ele prezava a liberdade acima de qualquer coisa. Para os leitores brasilienses, há mais um dado curioso. Um dos contos de Machado de Assis, A parasita azul, é ambientando em Luziânia, que, antigamente, se chamava Santa Luzia. E há também personagens jurídicos nesta obra, os quais são apresentados no Código de Machado de Assis.
Código de Machado de Assis – Migalhas jurídicas
De Miguel Matos. 589 páginas/Ed. Migalhas
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