Literatura

Xico Sá traz futebol para ficção com narrativa que simula tempo de jogo

Em "A falta", nova ficção de Xico Sá, escritor narra a vida de um goleiro durante uma partida de futebol. Figura do jogador que defende a trave sempre foi uma obsessão para o autor

Nahima Maciel
postado em 16/08/2022 06:00
 (crédito: Arquivo pessoal)
(crédito: Arquivo pessoal)

Demorou para Xico Sá trazer o futebol para a ficção. Crônicas, ele havia escrito e publicado em um livro, mas romance, o escritor acredita que nunca fez porque sucumbiu à "lenda" de que "futebol não vende livro". Tudo mudou quando descobriu que o francês Albert Camus, autor de A peste, foi goleiro, Xico ficou sem saída. A falta acaba de sair do prelo com a história de Yuri Cantagalo, goleiro em clima de despedida do campo e de um amor perdido, personificação do encantamento obsessivo de Xico Sá com a figura do camisa 1, o herói solitário encarregado de barrar a bola. "Foi uma tabelinha de uma obsessão antiga de observação do goleiro com Camus: quando bateu os dois, não tinha mais saída, tinha que escrever", garante o autor.

Narrado em ritmo acelerado, em primeira pessoa, com capítulos curtos, cada um dedicado a um dos 90 minutos de um jogo de futebol, A falta repassa a vida de Yuri Cantagalo durante uma última partida de futebol. Ali, enquanto se despede do campo, o goleiro conta episódios marcantes de sua trajetória. O pai desconhecido, o abandono da namorada espanhola, jogos memoráveis, as passagens por vários times e o abuso sexual por parte de técnicos de equipes juvenis dividem espaço com a angústia de uma partida insossa, marcada por um zero a zero difícil e de desmontar. "Eu tinha uma obsessão com a história do goleiro", avisa Xico. "Esse personagem solitário, jogando de preto, o único com outras regras no campo, pode pegar na bola com a mão. Aquela solidão, aquela angústia do goleiro sempre em alerta. Era uma obsessão antiga trazer o tema do futebol, que amo muito, para campo de outro amor, que é a literatura."

Pequeno, pendurado na rede em Santana do Cariri, Xico Sá ficava pasmo com a capacidade narrativa dos locutores de jogos de futebol. "Narrador de rádio, de certa forma, é um grande ficcionista. Sempre me impressionei de estar assistindo ao jogo sem ver a imagem, a forma como esses caras narram, a bola que passa longe e você fica morrendo do coração", lembra. A falta é também uma homenagem a essas figuras no personagem de Dáblio Dáblio e de Vera Dubeux, na qual o autor mistura duas colegas do início da profissão: a jornalista Vera Ogando e Ana Dubeux, diretora de redação do Correio Braziliense. "Foram as duas mulheres que primeiro testemunhei na vida cobrindo futebol, com entrevista ali, dentro do campo, pra valer. Trabalhamos juntos num tablóide esportivo, no Recife, e era uma grande novidade na época e motivo de muita admiração aquele pioneirismo", lembra o escritor.

Apesar de ser ficção, o livro carrega muito das memórias e tem uma pitada de autobiografia, uma combinação inevitável para quem escreve romances, segundo Xico Sá. O fascínio pelo futebol nunca havia sido transportado para a literatura até então porque o autor acreditava na tal "maldição" de que o esporte não vende livro. Ele agradece a Sérgio Rodrigues por ter quebrado o encanto no Brasil com O drible e a Nick Hornby por ter vendido milhões de exemplares de Febre de bola. O futebol rende romance porque no campo manda o drama. "Ali tem um romance a cada jogo. O Nelson Rodrigues dizia que, mesmo numa pelada de rua, há uma complexidade shakespeariana, com o vilão, o cara que levou o frango, condenado pela torcida e uma galeria de personagens. Faz chorar, tem um drama muito pesado. É literatura em estado bruto", acredita.

Referências de romancistas brasileiros que se aventuraram pelo futebol, há poucas. Xico lembra de José Lins do Rego com Água-mãe, no qual o protagonista é apaixonado por futebol, mas também de críticos do esporte como Lima Barreto, que se enfezava com a origem elitizada do esporte, e Graciliano Ramos, que achava esse lance de bola um estrangeirismo bobo, coisa de inglês. Hoje, se fosse escrever contra o futebol, Xico Sá não teria problemas em escolher um aspecto ruim do esporte. "Basta pegar a forma como foi elitizado o público dos estádios. Não tem mais a massa, a torcida operária dos clubes não está mais em campo. Está o torcedor, com sua carteirinha. O trabalhador não pode mais ir para essas arenas", lamenta.


A falta

De Xico Sá. Tusquets, 160 páginas. R$ 47,90

Por que narrar o livro minuto a minuto, como numa partida de futebol?

O formato é muito calcado na narração da rádio. Quis fazer uma homenagem. A tentativa, no começo era disso, de tentar fazer tudo acontecer em 90 minutos, passar a sensação. Porque em matéria de literatura, o acontecimento e o tempo que passa é um segredo que ninguém alcança.

O tempo é uma ficção?

Sim, talvez a maior delas. Cada capítulo começa com a marcação do tempo, aí a ficção do tempo que entrou. Tem uma agonia muito grande que é: o tempo está se acabando para todos os mortais e, em especial, para o goleiro. É fim de carreira, de amor, de tudo.

Demorou para você escrever um romance sobre futebol. Por quê?

Eu acho que fui engolido por essa coisa que tento combater, que é o futebol ter tão pouca ficção, ter poucos filmes, render pouco na matéria das artes em geral. Esse livro é o começo de uma resposta. Devemos ter mais ficção. Uma coisa que encobre o Brasil inteiro. Mas começamos com livros importantes. O drible, de Sérgio Rodrigues, dos recentes, é o mais emblemático, abriu as porteiras para que a gente fosse trabalhando nesse campo. Tem outro, A cobrança, de Mario Rodrigues, ganhou o prêmio Sesc de literatura. O livro novo do Mario Prata, Drible da vaca. Acabei cedendo a essa tradição de não explorar muito na ficção, mas essa experiência me deixou quase numa obrigação particular de fazer novas coisas nessa área. Agora, não quero mais parar.

Por que é difícil ter romances sobre futebol?

Por causa de um bocado de lenda que a gente foi acreditando e foi sendo engolido. Uma delas é que futebol e literatura não vende. Isso é mortal no mundo de mercado em que a gente vive. Quem quebrou essa lenda foi Nick Hornby, com A febre de bola. Foi até um certo conforto saber que não era só uma história dos editores no Brasil. Acho que isso contou muito ao longo do tempo. E o fato de haver um certo domínio, de o futebol já ser uma grande linguagem que vai do botequim à discussão em casa, quase uma arte à parte, talvez por isso a gente tenha essa dificuldade de usá-lo na literatura e no cinema. Tudo são especulações.

 


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  • Escritor Xico Sá
    Escritor Xico Sá Foto: Arqiuvo Pessoal
  • 02/10/2019. Credito: Vinny C. /CB/D.A. Press. Brasil. Brasília -DF. O Prof. de futebol Marcos Vinicius da aula para alunos que sempre quiseram ser goleiros. Local: CelaCap (Guará). Na foto: Prof. Marcos Vinicius e seus alunos da escolinha para goleiros.
    02/10/2019. Credito: Vinny C. /CB/D.A. Press. Brasil. Brasília -DF. O Prof. de futebol Marcos Vinicius da aula para alunos que sempre quiseram ser goleiros. Local: CelaCap (Guará). Na foto: Prof. Marcos Vinicius e seus alunos da escolinha para goleiros. Foto: Vinny C./CB/D.A Press
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