“Nunca é alto o preço a se pagar pelo privilégio de pertencer a si mesmo”, a frase do filósofo Friedrich Nietzsche tem várias nuances importantes, mas Jonathan Ferr a encontrou nos estudos sobre uma palavra que tem um sentimento e um significado muito específico para o pianista de jazz: liberdade. O termo foi escolhido para dar nome ao mais recente disco do artista, que mesmo estando em um nicho muito específico e, por vezes, elitizado, começa a cair no gosto do público.
Jonathan chega ao terceiro disco e decidiu que era hora de dar mais um passo na carreira. Ele convidou nomes do calibre Luedji Luna, Kaê Guajajara, Rashid, Tássia Reis, Avuá e Tuyo. E, mais importante, saiu apenas da parte instrumental e cantou em uma das músicas. Após ganhar notoriedade com o antecessor Cura foi a hora de, literalmente, se sentir mais livre em Liberdade. “O que vem depois da cura? Vem a liberdade”, observa o jazzista, em entrevista ao Correio.
O álbum tem um caráter colaborativo porque a vida de Ferr também vai nesta linha. Ele sempre viu a força na união e na ancestralidade. “Ubuntu, uma palavra que ficou um pouco banalizada nos últimos tempos, mas eu acho ideal para esse momento. Esse disco é muito ubuntu”, pontua. O termo é das línguas zulu e xhosa e significa: “eu sou, porque somos”. “Eu sou porque minha mãe é, porque minha avó foi, meu bisavô foi. É uma obrigação e um dever ancestral eu ser feliz e eu amo ser feliz com os meus”, explica.
Essa colaboração foi feita com as pessoas que sempre estiveram em volta do artista, figuras que representam a forma dele de pensar. “Eu sempre fui um jazzista que andava com beatmakers, rappers, funkeiros e MCs. Essa é minha turma”, afirma o músico, que abriu esse projeto para os samples e as batidas que conversassem com o hip-hop, pois, dessa forma, se sentia mais representado. “Quando trago os meus para criar um grande extrato de felicidade registrado em uma obra, estou dizendo que estou junto com os meus para reverberar alegria e falar de algo que é sobre o outro, mas é sobre nós também”, acredita o artista.
“O hip-hop esteve comigo desde sempre, ele chegou com o jazz, mas de maneira diferente”, conta. O músico acredita que o jazz e o hip-hop combinam no disco, porque andam lado a lado na própria vida. “O jazz me deu liberdade e noção espacial diferente na música e o hip-hop me deu liberdade política e consciência espacial na sociedade. São dois lugares muito específicos, que parecem distintos, mas que se complementam”, observa, e vai além. “Eu descobri que era um homem preto ouvindo hip-hop, ouvindo MV Bill, Racionais. A consciência racial e política do espaço ao qual eu movimentava foi o hip-hop que me trouxe. O jazz me trouxe o artista que sola, que improvisa e de coisas que eu podia fazer que estavam para além das canções que ouvia naquele momento”, completa.
O músico entende como missão fazer com que o próprio público entenda o jazz fora da bolha branca e de elite na qual a música foi colocada. afinal de contas, o jazz começou entre os negros norte-americanos. “Embora o jazz tenha se elitizado, tomei para mim a missão de tirar aqui do Brasil o lugar de elite dessa música e colocar no ouvido de quem está nas periferias e subúrbios. O hip-hop estava presente comigo e eu o utilizei para minha missão”, pontua Ferr.
Presente, passado e futuro
Com o pé no presente, o olho no futuro e sem esquecer o passado, Jonathan Ferr tem o costume de enviar cartas para o pequeno Jonathan de 9 anos. A idade marca quando começou a tocar piano. Ele pede para que o garoto passe pelos momentos difíceis e não desista, pois o futuro será melhor. “A realidade à minha volta me dizia muitos nãos, tudo era não. Faltava recursos, era difícil conseguir as coisas. Fui ter meu primeiro teclado seis anos depois que comecei a tocar, peguei o piano só depois dos 30 anos”, lembra o músico, que agora lida com o sucesso do terceiro álbum da carreira e com o próprio. “Fui construindo à medida que galgava e sempre ia falando para esse cara de 9 anos de que isso era possível. Afinal, só sou hoje, porque o Jonathan de 9 anos acreditou que era possível”, comemora.
Por isso, ele advoga que é preciso sonhar para conseguir, é preciso almejar para conquistar. “Nós, seres humanos, precisamos das nossas fábricas de ilusões. Como nós vamos acessá-las não importa, mas precisamos disso independente da profissão. Nós precisamos criar utopias”, diz Jonathan, que entende melhor o nome do próprio disco dessa forma. “As pessoas não se autorizam a acreditar nas próprias utopias. Se autorizar e permitir a viver utopias, ou o que chamo de fábricas de ilusões, é liberdade”, reflete.
Ferr se apaixonou pelo jazz ao ouvir John Coltrane, um saxofonista negro, e agora traz artistas negros para que juntos possam fazer um disco de jazz que marque pessoas, como Love supreme (1965) o marcou. “Quando Coltrane lançou esse disco, ele nunca imaginou que dali a 50 anos um jovem brasileiro, do Rio de Janeiro, de Madureira, ia ter a vida mudada por ele. Eu sou o legado de John Coltrane, da história dele também”, explica o músico, que quer que Liberdade seja para outros pequenos Jonathans uma ideia de futuro melhor. “As pessoas me chamam de artista afrofuturista porque eu estou falando de utopias a partir da minha vivência como homem preto, então eu penso em uma sociedade em que vejo pessoas como eu vivendo e sendo felizes”, conclui.
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