Há arte nas estratégias bélicas — ainda que seja no caso do talento do cineasta Ridley Scott em retratar a controversa figura do lendário Napoleão Bonaparte, criado sob a magnitude de mais uma inspirada interpretação de Joaquin Phoenix. Até a cinematográfica queda de seu corpo, no exílio na ilha de Santa Helena (um terreno britânico), que faz par (visual) com a dos protagonistas de O poderoso chefão 3 (1990) e Morte em Veneza (1971), muitas vidas serão perdidas na tela. Entre as mais de 60 batalhas que comandou, com a meta de repaginar o trono francês e restabelecer a ordem social (ainda que com infinitas arestas), o militar intitulado imperador esteve envolvido em mortes contabilizadas em milhões.
Baionetas, canhões e outros armamentos, eram os instrumentos do comandante audaz, vindo da Córsega e que batalhava junto da tropa, num corpo a corpo extremamente bem coreografado e captado pelas lentes do diretor de fotografia polonês Dariusz Wolski (presente em obras definitivas como Sicário e Perdido em Marte). Quase tornado carismático, guardado o exagero, a cada estudado gesto de Phoenix, o general tem a vida devassada e bem-posta, incluída a vida íntima.
O mesmo homem que dissolve insurreições à base de canhões contra populares e que treinou militares indisciplinados é mostrado como alguém inseguro, insano e apaixonado na humanizada visão de Scott. Entre os amores definitivos— a França, o Exército e Josefina, papel que, no cinema, coube a Vanessa Kirby. A futura esposa, nascida na Martinica, responde pelo incêndio no dia a dia de Napoleão, esvaziado de maiores emoções (descontadas as dos teatros de guerra). Entremeando a desesperada busca por um herdeiro, Napoleão, à distância da mulher, se mostra alguém desesperado por amor, que ele pretende ver consagrado em cartas a serem redigidas pela esposa. O governante chega a clamar por correspondências dela.
Mesmo depois da aberta traição de Josefina com Hypolitte Charles (Jannis Niewöhner), quando das malas postas à porta do palácio, fica patente a extensão da relação doente. Tachada de "criatura, porca e egoísta", Josefina é capaz de arrancar um "não sou nada sem você" do marido, tão imediatamente descobertos os casos extraconjugais.
Visto como companhia constrangedora e como sujeito bronco, vale ressaltar que o estadista viveu o período em que a guilhotina era a mais afiada palavra final. Numa cena impressionante, situada em 1793, Maria Antonieta é decapitada por desvalorizar o tesouro nacional, beneficiar Estados inimigos e trazer insegurança para os franceses. A violência pega todos os espectadores desprevenidos, em momentos como o do cavalo, todo estilhaçado, no cerco de Toulon.
Os objetivos militares das tentativas de tomar Moscou e São Petersburgo, no cinema ganham magnitude relevante, a exemplo da Campanha do Egito, quando Bonaparte cita traços (em si) de César e de Alexandre, o Grande. Entre a conspiração com fantasiosas renúncias ao poder de integrantes do chamado diretório (quando o futuro imperador cavou o posto de primeiro cônsul), tudo ao ritmo cartunesco, é hilário ver Napoleão "ouvindo" conselho de múmia.
Noutro ponto absurdo (e irônico) do roteiro, que confirma insanidades do biografado, há tiradas como "(Eu) não sou ambicioso" e a tentativa (dele) "aceitar o fracasso do outro". Até a determinação de seu exílio, a 1,6 mil quilômetros da costa africana, Napoleão impressiona com vistosas cenas como a da autocoroação, sem a menor pompa ou solenidade, em 1804, e a da prisão em Plymouth, além das sequências de desafio ao "jovem popular e vaidoso" czar da Rússia Alexandre I (papel do ator franco-finlandês Edouard Philiponnatt).
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