Música

A criminalização do funk sob a ótica dos casos de Mc Poze do Rodo e Oruam

Especialistas discutem associação da arte de favela com o crime a partir de episódios recentes envolvendo artistas do gênero

A prisão do MC Poze do Rodo ressoou na cultura periférica brasileira e se transformou numa polêmica em vários segmentos do show business. A associação da arte de favela com o crime gerou reações mistas em todo país, mas também ligou um sinal de alerta sobre racismo estrutural e institucional, classismo e a criminalização da música preta.

Em 29 de maio, o MC carioca Poze do Rodo, nome artístico de Marlon Brendon Coelho Couto da Silva, foi preso sob acusações de associar-se a uma facção criminosa e fazer apologia a crimes como o tráfico de drogas nas músicas que compõe e canta. O fato gerou uma grande mobilização do público e da mídia. Mesmo após a soltura do cantor, o debate continua. O funkeiro tem 6,6 milhões de ouvintes mensais no Spotify.

Para além do tratamento com MC Poze do Rodo, também houve toda a cobertura sobre o caso da proposta de Lei conhecida como anti-Oruam, feita pela vereadora Amanda Vettorazzo (União-SP), que visava proibir que a administração pública municipal contratasse artistas que fazem apologia ao crime organizado ou ao uso de drogas em eventos públicos. Oruam é um artista de trap e funk que está entre os mais ouvidos, com 10,9 milhões de ouvintes mensais no Spotify.

"É óbvio que é um ataque às manifestações artísticas e expressões do funk com um discurso muito utilizado de que os funkeiros fazem apologia ao crime ou aos criminosos, mas para mim é uma busca por suprimir, abafar e calar as vozes de uma parcela da população. A parcela preta e favelada", avalia Juliana Bragança, pesquisadora do funk, professora de história, doutoranda em história social pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ/FFP) e autora do livro Preso na gaiola, sobre a criminalização do funk dos anos 1990.

A especialista enxerga que faz parte de uma estrutura da sociedade essa ação contra os ritmos periféricos. "Eu não tenho dúvida que a perseguição contra os funkeiros é calcada no racismo e no classismo. A criminalização do funk faz parte de um processo muito maior que é o do racismo estrutural", diz Juliana, que entende a força exagerada e o discurso atravessado da polícia como sintoma disso. 

Comparação

Ao entender o funk como um ritmo associado à esfera do crime, é inevitável a comparação com o histórico do samba. O gênero começou nos morros e desceu para os asfaltos e se popularizou em várias esferas da sociedade por conseguir conversar com o que o público queria na época. No entanto, sofreu com preconceitos e foi até objeto do Código Penal de 1890, quando foi criminalizado no artigo 59 da Lei das Contravenções Penais, a chamada Lei da Vadiagem.

"O que gera o preconceito com todas as manifestações é justamente o público ao qual elas são associadas", pondera Danilo Cymrot, doutor em direito pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro O funk na batida: baile, rua e parlamento. O acadêmico reflete que o samba e o funk passam por esse processo no eixo Rio-São Paulo, mas é um problema que ocorre em todos os gêneros populares, entre as esferas menos privilegiadas da sociedade em todo o Brasil. "Se você olhar para o pagode baiano, ele sofre as mesmas acusações que o funk sofre em São Paulo e no Rio de Janeiro, da mesma forma o tecnobrega no Pará", exemplifica.

Danilo percebe um receio, por parte de determinadas instituições, do efeito de uma pessoa que consegue transmitir as ideias de forma mais relacionável com o ouvinte das classes sociais mais baixas. "Existe um medo da força que essas manifestações têm e um pouco a ideia de que elas podem influenciar o comportamento dos mais pobres e vulneráveis. Se o objetivo é controlar essa esfera social vista como ameaçadora, a melhor forma é controlar as manifestações culturais dela", acrescenta.

O especialista também vê o gênero como uma forma de contar a história de uma realidade sem necessariamente ser o motivo pelo qual as pessoas se inserem no crime. "Uma pessoa que tem acesso a um fuzil e está disposta a matar e a morrer, o tipo de música que ela ouve é secundário. É importante saber como aquela arma chegou àquela pessoa e por que realmente o crime parece uma saída para pessoas, por que vale mais ser preso ou morrer jovem a viver fadado a uma vida de subemprego?", questiona. "A influência das letras é secundária, afinal pessoas de outras realidades ouvem essas músicas e nem por isso são contadas dentro dessa influência", complementa Danilo. Portanto, segundo ele, o problema não é exatamente com a realidade do crime, mas com as pessoas que têm que viver dentro dessa realidade todos os dias.

"O funk é perseguido por ser um ritmo oriundo dos pretos, pobres e favelados e não por cantarem uma realidade. A perseguição é a uma cultura e uma manifestação enxergada como inferior. As pessoas têm dificuldade de entender funk como arte", classifica Pietro Reis, jornalista musical, criador de conteúdo e responsável pela newsletter semanal Segue o som.

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Não existe arte menor

Para os pesquisadores, o funk está em crescimento no Brasil. Seja nas paradas de sucesso ou na presença em eventos, o estilo musical é um dos mais populares do país. Em junho, três das dez canções nacionais mais ouvidas na plataforma Spotify eram funks e os três vídeos de música mais vistos no YouTube brasileiro eram de gêneros de trap e funk. O terceiro, a faixa Desabafo 2 do próprio Poze do Rodo, lançada após ele sair da prisão. "É impossível ignorar o tamanho que tomaram funk e trap no Brasil, mas mesmo com esse tamanho todo eles são negligenciados em festivais, premiações, na academia, em museus e em pesquisas", diz Pietro.

O estudioso de música entende que o funk vive justamente o que o samba viveu no passado. "É difícil explicar como um gênero cresce, mas talvez ele esteja conseguindo se comunicar com como a juventude pensa hoje em dia", afirma. "O funk e o trap estão representando e captando bem o zeitgeist (o espírito do tempo) de uma geração", ressalta.

A posição de Danilo é similar e ele ainda destaca que não é contraditório descer os morros e ser criminalizado. "São duas vertentes diferentes de funk: a que faz sucesso em terras estrangeiras e a que fala de crime. Porém, mesmo a que faz sucesso e ganha o mundo com nomes como Anitta também sofre preconceito. Ainda há um incômodo dos brasileiros com o sucesso internacional do funk, por acharem que não é o melhor a se mostrar do país", aponta. "Existe um elitismo cultural de associar a cultura dos pobres como uma cultura pobre. Como se a única cultura digna de respeito viesse das classes média e alta", conclui.

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