Desde criança, o diretor de cinema Marco Dutra era fisgado por filmes de terror e fantasia. Com o tempo passando, já na faculdade, ele naturalmente firmou parceria com colegas como Juliana Rojas, Caetano Gotardo e Daniel Turini. "Quando começamos, parecia ser uma minoria que acreditava no cinema de gênero brasileiro, a despeito das obras históricas do José Mojica Marins, do Walter Hugo Khouri (que assinou, nos anos de 1970, filmes como O anjo da noite e As filhas do fogo). Mas o panorama foi mudando, e hoje cineastas como Gabriela Amaral Almeida, Rodrigo Aragão, Kleber Mendonça Filho e muitos outros abraçam o horror e a fantasia como uma forma de abordar questões tanto íntimas quanto sociais", diz Dutra, que, atualmente, tem um filme do gênero terror em cartaz no país: Enterre seus mortos.
O cineasta vê no Brasil um "terreno fértil" para desenvolvimento do gênero. A perspectiva de público moveu as coprodutoras Globoplay e RT Features ao entusiasmo do lançamento nas telas de cinema; mesmo com a anunciada chegada do título ao streaming. "Desenhei Enterre seus mortos em tela larga, ou 'scope' (na proporção 2.39:1), com muitos planos abertos, com os personagens se relacionando com o espaço amplo e decadente ao seu redor, perdidos em uma atmosfera sonora muito poderosa", explica Dutra.
Para além do colorido nacional, Enterre seus mortos busca trazer obras inusitadas na formatação de conceitos. Falamos dos filmes bíblicos de Cecil B. DeMille, do pintor Hieronymus Bosch, de filmes de ficção científica e de faroestes, mas sempre voltando para o terror e a fantasia. Apesar de contar com uma "caixa de ferramentas" específica, o horror é livre, por natureza, justamente para poder investigar a fundo nossos medos e sombras", avalia Marco Dutra, que defende, a cada obra, a busca pela individualidade da história, guiada por "ritmos e atmosferas". Enterre seus mortos implanta o terror num contexto bastante brasileiro e específico: o cenário do fim do mundo é a afastada Abalurdes, no Vale dos Ruminantes, território fictício da literatura de Ana Paula Maia. "As personagens se sentem na periferia do apocalipse. Dentro da perspectiva do fim da humanidade, há o despertar quase cósmico de impotência e solidão. Desafios não faltaram para o filme que envolve muita ação física — há carregamento de corpos, movimentação de caminhonete pelas estradas, cenas com efeitos visuais, cenas de ação e de horror", conta o diretor que trabalhou, dia a dia, com o carismático Selton Mello.
"Selton é um baita ator e diretor também. Leu o roteiro e ficou encantado, mas levou alguns dias para entender se o filme poderia se encaixar nas pulsões dele naquele momento", destaca Dutra. Não tardou a resposta: Selton disse que não conseguia parar de pensar no roteiro e no Edgar Wilson (personagem dele), nas camadas sombrias e nos mistérios do personagem. "Apesar de o resultado do filme de horror, em geral, ser sombrio e perturbador, o fazer em si é uma aventura, é como montar um quebra-cabeça: o lúdico move o processo", conclui.
Em torno do recém-lançado filme de horror O porão da rua do grito, a diretora Sabrina Greve injeta um teor associado por ela à camada de profundidade explorada pelas mulheres, num potencial alegórico inerente ao gênero. "Acho que as mulheres estão focadas no horror que vem da vida real, no horror social, e em como o medo é usado como uma forma de controle sobre o outro. No meu caso, no filme, me aproprio de códigos de filmes de casa mal-assombrada para abordar temas muito reais e urgentes, como a violência doméstica e o feminicídio. Acho que o gênero do terror pode ser uma ferramenta para falar de traumas, de memórias silenciadas e de questões que precisam ser confrontadas", diz, respaldada por bom retorno de público nessa vertente.
A diretora enfatiza que o tipo de terror que a move é o da "memória que assombra". "A casa do filme é mal-assombrada, mas ela é, principalmente, um cofre de segredos de família. O passado ali não é estático; ele é recriado e se torna uma ameaça emocionalmente real no presente. Eu quis revisitar o imaginário infantil para falar de temas adultos, discutir como a violência pode ser herdada e atravessar várias gerações", pontua.
Medos geridos no interior de lares unem as propostas de Sabrina Greve — que não deixa de valorizar as "respostas imediatas" do susto "por choque e jumpscare" — e o cineasta José Eduardo; ele, às vésperas de lançar o longa Aurora 15. Filmado em 2015, o longa nasceu de uma espera, como diz Belmonte, que completa: "Essa decantação se tornou parte da sua própria matéria. Elementos surpreendentes talvez estejam menos no que o filme mostra e mais no que ele retém: os silêncios, as pausas, as ausências que o espectador precisa preencher". Distante de um enunciado de apocalipse, o cineasta começa a formular adaptações de dois títulos da literatura, também em cenários assombrosos: Dentes ao sol e O beijo não vem da boca (ambos de Ignácio de Loyola Brandão). "Mais do que distópicos, quero que sejam radiografias poéticas de um país à beira do colapso, um Brasil em transe, mas ainda pulsante. Admiro o equilíbrio entre delírio e afeto, lido em Loyol. Quero levar isso ao cinema com a percepção de que o fim, às vezes, é apenas uma forma extrema de recomeço", observa Belmonte.
Duas perguntas // José Eduardo Belmonte, cineasta
Qual o teor do terror q tem explorado? O ambiente doméstico tem sido aterrorizante o suficiente, para que males não cheguem de fora?
O terror que mais me interessa hoje é o que se insinua, não o que se impõe. A casa, esse espaço que deveria ser o abrigo, tem se tornado, para muitos, o verdadeiro campo de batalha. É ali que as rachaduras aparecem primeiro, antes de qualquer fantasma. O mal, nesse sentido, não chega de fora; ele se infiltra pelas frestas da convivência, do silêncio e das pequenas violências cotidianas. O ambiente doméstico é o espelho mais cruel do nosso desamparo.
Quais as inflexões genuínas do terror brasileiro? O gráfico é acanhado e o psicológico pega mais? O que acha dos referenciais Juliana Rojas, Marco Dutra e Rodrigo Aragão?
O terror brasileiro nasce do real, de uma experiência coletiva de medo que já está no ar antes de qualquer ficção. Nossa história é assombrada: pelos apagamentos, pelas desigualdades, pelas violências que se repetem e nunca se encerram. Por isso, o terror psicológico tende a pegar mais: ele dialoga com traumas que não precisam de monstros para existir. O horror no Brasil não é importado, ele é endêmico. Mas é importante lembrar: o terror não pode sua origem popular, sua força de comunicar direto com o corpo e com o imaginário coletivo. Cada um desses cineastas, à sua maneira, tentam transformar o medo em linguagem e o simbólico em denúncia. O cinema deles abriu caminho para que novas gerações experimentem e repensem o gênero.
Batalha de horrores
Três soldados, desertores da Guerra do Paraguai, lidam com os problemas de fuga, sendo cassados pelo crime de largar o front. Sem muitas opções e com um deles ferido, o trio para em uma casa no meio da mata, encontrando um velho fazendeiro e uma garota, que apesar das aparências, escondem uma trama terrível por trás das suas fragilidades. A própria carne é um filme nacional e independente do grupo Jovem Nerd — encabeçado pelos influenciadores e empresários Alexandre Ottoni, o Jovem Nerd, e Deive Pazos, o Azaghal — em parceria com o ex-diretor do Porta dos Fundos, Ian SBF, sendo seu primeiro longa de terror. O trio principal traz Jorge Guerreiro como Gustavo, George Sauma como Anselmo, e Pierre Baitelli como Gabriel. O fazendeiro é interpretado pelo ator e dublador Luiz Carlos Percy, que estreia nas telonas com uma performance horripilante e psicológica, aproveitando cada recurso do seu vozeirão para amedrontar o espectador. Por fim, Jade Mascarenhas vive a garota, saindo muito da zona de conforto da comédia e executando uma das cenas mais sinistras do filme. A própria carne está em cartaz exclusivamente na rede Cinemark.
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Prédio vazio
O diretor Rodrigo Aragão alia o clima de carnaval à violência, numa misteriosa edificação de Guarapari (Espírito Santo). O enredo, humorado (por vezes) revela sumiços sistemáticos de pessoas. Luna (Lorena Corrêa), ao lado do namorado (papel de Caio Macedo), parte para resgatar a mãe, aparentemente inserida em realidade de violência doméstica. Disponível nas plataformas Google Play, youTube e Apple TV
Apanhador de almas
Com Klara Castanho, Ângela Dippe e Jessica Córes no elenco, a dupla Fernando Alonso e Nelson Botter Jr. conta o impasse de quatro amigas, unidas durante um eclipse solar, numa realidade em que descobrem, uma vez envolvidas em um ritual mágico, a sentença de morte de três delas. Disponível nas plataformas Google Play, youTube, Apple TV e primeVideo
Recife assombrado 2 — A maldição de Branca Dias
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