Foi visando tratar a diversidade não como uma soma de presenças, mas como uma arquitetura de sentido, que o curador e escritor português José Manuel Diogo reuniu influências lusófonas no 2º Festival Literário Internacional da Paraíba (FliParaíba 2025), ocorrido entre 27 e 29/11, em João Pessoa.
Ao Correio, Diogo descreve a curadoria iniciada pelos eixos temáticos ancestralidade, identidade e democracia, para depois buscar autores que tencionaram tais temas de lugares distintos. Por isso, as mesas de debates contaram com presenças oriundas da Paraíba, de todo o Brasil, de Portugal e da África lusófona. “Essa coerência temática não eliminou o risco do encontro; ao contrário, garantiu que a representatividade fosse mais profunda do que uma lista de nomes: ela tornou-se um modo de pensar a língua e o mundo”, afirma.
Onde a língua está viva, Diogo enxerga um encontro entre saber acadêmico, literatura, cultura popular e oralidade — culminando, enfim, na democracia. “O saber acadêmico oferece rigor; a literatura, invenção; a cultura popular, pertença; a oralidade, memória. Quando essas quatro camadas dialogam — como acontece no FliParaíba — formam um território comum onde a democracia deixa de ser conceito e torna-se prática: uma escuta horizontal, múltipla, inclusiva”, destaca. “A democracia cultural começa quando todos têm o direito de dizer e de ser ouvidos.”
A ancestralidade, diz o escritor, deixa de ser conceito quando vira prática pedagógica e afetiva: “Isso significa criar programas de leitura nas escolas alinhados às tradições locais, aproximar escritores de comunidades ribeirinhas, quilombolas, indígenas e urbanas, e promover oficinas de oralidade, memória e imaginação. A ancestralidade torna-se ação quando reconhece que o Brasil não é uma ideia abstrata — é um acervo vivo de histórias que precisam ser transmitidas.”
Da união entre autores de continentes diferentes, nasce conciliação, confronto e novos modos de ler o mundo — mas nenhum deles isoladamente. “O encontro verdadeiro produz fricção criativa: não é conciliação fácil nem confronto gratuito, mas a possibilidade de ler o mundo por múltiplas diagonais”, argumenta Diogo. “Autores que vêm da Europa, da África e do Brasil não carregam apenas geografias distintas — carregam diferentes modos de sentir o tempo, de ouvir a língua e de imaginar o futuro. Dessa mistura nasce algo raro: pensamento expandido.”
A importância da curadoria dá-se na criação de espaços de desaceleração. Segundo o português, um festival não precisa competir com o ruído, mas sim criar o seu próprio ritmo. “Mesas que convidem ao silêncio reflexivo, intervalos generosos entre conversas, mediação que privilegie a escuta e não a disputa, e ambientes que permitam ao leitor sair diferente do que entrou”, ilustra. O FliParaíba apostou nisso: menos espetáculo, mais presença; menos velocidade, mais sentido.
Criar novos modelos de circulação cultural para vozes historicamente excluídas ainda foi um dos compromissos centrais do festival. Conforme Diogo, a circulação cultural tradicional privilegia os centros. “Nós trabalhamos a partir das bordas”, contrapõe. Ao aproximar autores periféricos, indígenas, quilombolas, africanos e nordestinos do mesmo palco que autores consagrados, o curador funda novas legitimidades e centralidades. “A curadoria não deve apenas selecionar vozes: deve abrir caminhos para que essas vozes circulem em igualdade de potência.”
A herança colonial da língua portuguesa, por sua vez, relaciona-se tanto com feridas históricas quanto com potências criativas. O equilíbrio surge quando enfrenta-se a contradição de frente. “Língua portuguesa é, ao mesmo tempo, ferida e ponte, violência histórica e imaginação coletiva. No festival, assumimos essa herança como matéria crítica: damos lugar às vozes que foram silenciadas, reconhecemos a história que nos atravessa e, ao mesmo tempo, celebramos a capacidade da língua de reinventar mundos. Não se trata de negar o passado, mas de transformá-lo em plataforma de criação”, esclarece o escritor.
