Cinema

Filme de brasiliense, em cartaz, trata das raízes globalizadas e de crime

No filme de estreia no mercado norte-americano, Quase deserto, o diretor José Eduardo Belmonte aposta numa trama de imigrantes e explora fictícias falcatruas infiltradas no cotidiano de Detroit

Há importantes cenas em que um personagem do longa Quase deserto anda às voltas com uma tornozeleira que, em muito, pode comprometer seu destino. Mas, antes que qualquer reflexo político possa ser configurado, o cineasta brasiliense José Eduardo Belmonte se adianta em esclarecer: "O filme foi rodado em 2023. A tornozeleira é usada como elemento dramático vindo da pesquisa sobre os processos de imigração". O roteiro da primeira incursão de Belmonte em filmagens pelos Estados Unidos, com Quase deserto, toca a promissora cidade de Detroit. Vencedor de dois prêmios Saruê (concedidos pelo Correio, ao melhor momento do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro), o mais recente deles pelo drama aventuresco e cômico Assalto à brasileira (vencedor de melhor filme, pelo júri popular), Belmonte está num momento de ampliar as perspectivas de uma carreira, há muitos anos, sólida e que inclui longas como Alemão e Carcereiros — O filme.

Mesmo assim, não se desvincula da capital, elemento de comparação com Detroit. "Brasília e Detroit compartilham esse 'meio do caminho': parecem lugares inventados, onde as pessoas habitam com uma certa interrogação permanente. Durante as filmagens, fui influenciado pelos tempos de Universidade de Brasília, em que o curso de cinema tinha um foco mais no documentário. Fui (para as filmagens) com espírito de documentarista. Entender o clima, a luz, a arquitetura, o silêncio da cidade que impõem um ritmo", diz, sempre disposto a descobertas.

Foi a partir dos primeiros tratamentos do roteiro, escrito por Belmonte e pelo amigo Carlos Marcelo (editor-chefe do jornal Estado de Minas), que o terceiro roteirista, o uruguaio Pablo Stoll, interferiu nas linhas. "O trabalho do Stoll foi decisivo para alcançar a concisão por meio de 'pontes', economia de palavras e de elipses nas ações — que são uma das marcas registradas de Whisky (longa codirigido por Stoll), um de meus filmes latinos favoritos", observa Carlos Marcelo. Quase deserto, recentemente, ganhou exibições no Festival do Rio e na Mostra de SP, antes de alcançar os cinemas brasileiros a partir de hoje.

Quase Deserto lida com situações de imigrantes, traz a imagem de Trump (na tevê e na onipresença) e ainda cria uma ciranda de dados com religião, especulação imobiliária, ações criminosas, tudo independente da ordem. "Acho que o mais difícil (no roteiro) foi a criação de três protagonistas com três nacionalidades e personalidades bem diferentes, mas motivações semelhantes: a busca por um renascimento, uma segunda chance em uma cidade em ruínas igualmente movida pelo mesmo desafio. Então, na verdade, vejo que o filme tem quatro protagonistas — Luís (o brasileiro Vinícius de Oliveira), Benjamin (argentino interpretado pelo uruguaio Daniel Hendler), Ava (a norte-americana, papel da descendente de armênios Angela Sarafyan) e Detroit. A interação e a fricção entre os quatro movem a narrativa", adianta Carlos Marcelo.

Até o ecoar do verdadeiro hino de louvor à capacidade e potência dos hispânicos, La voz del inmigrante (de MR JC), muita coisa se passa em clima de thiller e aventura, sem perder a gramatura intimista de cada personagem. Antigo editor-executivo do Correio e crítico musical, Carlos Marcelo (formado na UnB) pontua a trilha como construção conjunta de Belmonte (que selecionou músicas existentes) e Zé Pedro Gollo (autor da trilha original do filme). "Fico bem à vontade para dizer que eles foram muito felizes no uso da música para criar ambiências e ressaltar aspectos da narrativa, combinando com a fotografia deslumbrante de Leslie Montero. A trilha envolve e cria um ponto de empatia com o espectador. Gosto especialmente de uma música que toca quase no fim do filme: Navidad en el country, da banda argentina Crema del Cielo. Foi uma descoberta", conclui.

Entrevista // José Eduardo Belmonte, cineasta

Como é sua relação com os Estados Unidos?

Minha relação com os Estados Unidos é prática e afetiva ao mesmo tempo. É um país de contrastes brutais: oferece estrutura, técnica, eficiência e, ao mesmo tempo, carrega uma confusão política e social que, às vezes, parece uma versão ampliada da nossa. Sempre encarei filmar lá como um laboratório: você é obrigado a se adaptar, a ouvir, a desmontar certezas. Para mim, é uma relação de aprendizado.

Imigração constante ou se sentir em terreno estrangeiro é um sentimento genuíno e globalizado nos tempos atuais?

A sensação de estar sempre fora do lugar, essa espécie de “imigração emocional”, me parece cada vez mais universal. O mundo globalizou também o desenraizamento: você pode estar na sua cidade natal e, ainda assim, sentir-se estrangeiro. Talvez por isso Detroit tenha me atingido tanto.

Há semelhanças entre Brasília e Detroit?

Detroit é uma cidade marcada por ausências, por ruínas, mas também por uma vontade de sobreviver e de se afirmar pelo espírito de comunidade, pela força da sua história e cultura. Brasília, por outro lado, é uma utopia projetada no futuro e que nunca chegou; Detroit é uma utopia do passado que já foi embora.

A síndrome "da moça boba” (ou nem tanto) surgiu de onde? Tem relação com os jovens pós-pandêmicos?

A “síndrome de Cansi Esteban” foi inventada. Era algo que dialogava com realismo mágico dentro da narrativa e nasceu de uma necessidade dramática de falar da importância da empatia e de como aquilo que pode parecer uma fraqueza vem a força. Queria retratar alguém que, num primeiro olhar, parece desorientada, quase ingênua, mas cuja fragilidade revela uma lucidez que ela mesma ainda não reconhece.

Que descobertas brotam dela?

Mais do que registrar a lucidez, quis mostrar o poder da generosidade. Como Ava muda o ambiente e as pessoas. Bons personagens são aqueles que não sabem tudo sobre si; e eu queria justamente isso, mas sem transformar isso numa tese. É só vida acontecendo torta. Devo muito à generosidade de Angela Sarafyan que fez esplendidamente a personagem, uma luz no filme, que na sua atuação e atitude consegue passar todas essas nuances.

Como você vê essa juventude algo desnorteada?

Essa síndrome talvez dialogue com uma geração que cresceu com excesso de estímulos em tempos distópicos. Depois da pandemia, muitos jovens carregam uma mistura de ansiedade, solidão e pressa por pertencimento. É como se o mundo tivesse ficado rápido demais para os mais sensíveis e lento demais para os mais inquietos. A personagem nasce daí e conversa com isso.

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Manual de sobrevivência 

Crítica // Quase deserto ★★★

Um thriller pós-pandêmico, com personagens desnorteados ou alquebrados: você pode até ter pensado em Ensaio sobre a cegueira — com o qual o novo longa-metragem de José Eduardo Belmonte é algo aparentado —, mas Quase deserto perpetua um clima de sondagem e da redescoberta da capacidade de empatia. A narrativa é formatada pelo espírito de união nascido em meio a um gueto da arrojada sociedade prevista para prosperar com Detroit, mas que se perde, a meio-caminho. Pelas fendas, brotam imigrantes ilegais incapazes de agirem como parasitas. Arregaçam as mangas, sem abrir mão dos méritos.
Pela graça de uma união orgânica, no filme, figuram Benjamín, jornalista que tateia, na calada, falcatruas estruturais do progresso de fachada na cidade de Detroit (sempre vinculada à indústria de automóveis) e o hermano Luís, brasileiro com sobrevida casada com o famoso "jeitinho" dos compatriotas, e a eles ainda se junta a incompreendida Ava. Todos estão enredados pelo testemunho de um assassinato.
Quase deserto traz ecos da filmografia de Belmonte, seja no relacionamento dificultoso com barreira de comunicação de Ava (elemento que traz à mente Meu mundo em perigo) ou seja no drama entremeado por ações policiais (mas, agora, os personagens são antes de nada vítimas, e, ainda assim, batalham em campo minado, num contraponto a Se nada mais der certo).
Dotado de certo humor, o roteiro funciona bem, e exige maior atenção do espectador quando dos manejos de tempos, na cronologia. O jogo de identidades que são reinventadas e se transformam (bem patente em A concepção) segue neste novo filme. Num mar de incertezas, a fragilidade e a perseverança de Luís ganha muito com a interpretação de Vinícius de Oliveira (o amadurecido menino de Central do Brasil). Deborah Chenault-Green, com uma força ao estilo de Pam Grier (de Jackie Brown), chama a atenção como a Kathy, pela capacidade de diplomacia e por impôr a austeridade dentro da comunidade. Com inspiração setentista, o diretor recauchuta, com brandura, estilos e mensagens atemporais. (RD)

 

 

 

 

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