
Tal qual o público do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o diretor formado pela UnB e concorrente aos prêmios Candango pelo longa Assalto à brasileira tem ciência de que muito mudou no evento. "Este novo filme dialoga com os meus curtas, ainda que não seja um filme indie. Noto que estou mais maduro, mais atento ao ritmo da vida. Mas sigo interessado nesse encontro entre obra e público, nesse choque de energia que só o cinema, em uma sala cheia, é capaz de produzir", pontua. Nesse sentido, como diz, estar na seleção de Brasília é como jogar na Bombonera.
No time de astros da telona, a escalação traz Murilo Benício, Christian Malheiros, Robson Nunes, Paulo Miklos e Débora Duboc. Na trama, um radialista quer retomar o rumo profissional e avança nos bastidores de uma ação criminosa (na vida real ocorrida em Londrina, nos anos de 1980). "Era 1987, o país tentando respirar depois de 20 anos de ditadura. Havia uma fome de mudança, mas a transição foi incompleta. O presidente era o ex-líder do partido dos generais, os ministros eram os mesmos, e a inflação, herança maldita daquele tempo ditatorial, estava em 391% ao ano. Nenhum golpista foi julgado. É nesse caldo de frustração e esperança que a história se desenrola. O filme captura esse momento em que o país parecia querer virar a página, mas a página insistia em ficar grudada no livro. Penso que avançamos muito, ainda que tenha muito a conquistar", descreve o autor de filmes como Alemão e A concepção.
Profissionais como o roteirista L.G. Bayão, a diretora de fotografia Leslie Montero e a diretora de arte Denise Dourado auxiliaram na criação de clima para recriar uma experiência vivida. "Buscamos o equilíbrio entre o realismo e a estilização. A trilha e a sonoridade acompanham esse movimento, alternando momentos de tensão quase física com respiros de humor e humanidade. Queríamos que o público saísse do cinema com a sensação de ter vivido algo intenso, mas também, de alguma forma, leve, um retrato de um país capaz de rir no meio do caos", diz Belmonte. O cineasta nota que o filme avança sobre a complexa relação que todo brasileiro tem com o país.
Com enfoque cronologicamente próximo ao episódio narrado em O sequestro do voo 375, Belmonte desencoraja comparativos: são "registros e estilos distintos". Há conexão, entretanto, com Quase deserto, outro novo filme dele que trata daqueles à margem da sociedade. "O cinema não é um tribunal; é um espelho fragmentado que nos ajuda a olhar para nós mesmos", defende, ao falar das contravenções que registra. E conclui: "Recriar, em sons e imagens, é traduzir. É encontrar um equilíbrio entre a precisão dos fatos e a liberdade do cinema, transformando a memória em experiência sensorial e emocional. Recriar histórias com pessoas reais é sempre um exercício delicado. A vida, para caber na ficção, precisa de convenções, ajustes de tempo, de espaço, de fatos. É um processo que exige rigor e sensibilidade, porque cada escolha narrativa mexe na percepção que o público terá do que aconteceu".
Entrevista // José Eduardo Belmonte, cineasta
Qual o jeitinho brasileiro de assaltar (risos)?
Esse filme mostra um assalto que está muito longe de ser um golpe de mestre, é um ato improvisado, quase amador, movido mais pelo desespero do que por cálculo. Ninguém ali era profissional. Eles foram de táxi assaltar o banco, sem sequer ter um plano de fuga. É tragicômico: quando são encurralados, a própria população, também vivendo tempos duríssimos, acaba torcendo por eles. A narrativa se constrói a partir dessa sequência de improvisos, de absurdos que se acumulam até se tornarem um grande evento coletivo. Percebo que muitos filmes sociais esquecem que o desespero pode gerar absurdos. Neste filme, a indiferença burocrática e a insensatez humana caminham lado a lado, e o humor não vem de piadas, mas da tenacidade dos personagens diante de um mundo que quase não os percebe. Isso é muito brasileiro: a capacidade de rir em meio a uma crise aguda. É mais que ironia, é uma forma de sobrevivência.
Estar na sala Vladimir Carvalho do Cine Brasília evoca que valores?
Para mim, mais que uma honra: é um lembrete do papel do cinema como ato político e gesto de memória. Fico feliz que o Cine Brasília carregue o nome de alguém que foi meu professor na UnB e que sempre atuou como um agregador, um farol. Se hoje Brasília filma, se há cineastas de tantas vozes e olhares diferentes surgindo, isso deve muito ao trabalho dele, à sua militância pelo cinema, à sua obra investigativa, ao cuidado obsessivo em registrar a memória do país. Nomear a sala é celebrar não apenas um artista, mas um espírito de resistência e de curiosidade, que ainda nos ilumina.
De onde este fascínio pelo submundo, pelo crime organizado? É possível ser conivente com os criminosos?
Abordar o universo do crime não é o mesmo que ter fascínio por ele. Assim como olhar com empatia para personagens à margem não significa absolver ou glorificar suas escolhas. Fascínio, para mim, seria buscar apenas catarse, transformar esse mundo apenas em espetáculo ou em fábula redentora, e isso deixo para outros realizadores. Carcereiros, Alemão, Se nada mais der certo ou qualquer outro filme meu nunca buscaram esse caminho. O fato é que vivemos em um país ainda por ser decifrado: violento, desigual, com um autoritarismo estrutural que persiste mesmo quando acreditamos tê-lo superado. É natural que, pela arte, queiramos entender esse país, e natural que o artista seja puxado para essas fissuras. Cada um responde a esse chamado à sua maneira, com o seu desejo de comunicação. Minha função, acredito, não é fazer tese nem julgar culpados, mas problematizar, organizar perguntas, dar voz às ambiguidades. Toda boa dramaturgia precisa compreender a razão de todos os envolvidos, vítimas, algozes, cúmplices, e transformar esse embate moral em experiência cinematográfica.
Há muitos dados reais no filme?
Este filme cresceu à medida que ouvimos as pessoas que viveram o acontecimento. Muitas delas estão no elenco como figurantes, trazendo para a tela algo que não se inventa em roteiro, uma memória viva. O episódio real teve de tudo: momentos nervosos, absurdos, até engraçados. Mas, acima de tudo, criou uma memória coletiva que é menos sobre o trauma e mais sobre a superação, sobrevivência. Meu cuidado foi justamente esse: transformar o fato em cinema sem traí-lo, sem reduzir sua complexidade a um espetáculo de choque ou a uma reconstituição fria. Adaptar algo real é, para mim, exige delicadeza, escuta. Nesse caso, preciso dar espaço para que o público sinta a estranheza, o riso e o medo, mas também para que reconheça naquele caos um retrato do país e de sua própria história.
Qual o tom do filme?
Por ser uma história de assalto com reféns, a tensão é inevitável, mas também há momentos de puro absurdo. Em certo ponto, os assaltantes chegam a distribuir dinheiro entre os reféns, e a população, de alguma forma, converge para o lado deles. Esse hibridismo foi o que nos interessou desde o início: como equilibrar o suspense com o riso, o medo com o espanto. Trabalhamos isso desde a sala de ensaio, explorando com os atores o tom certo para contar a história. O caminho foi através de um diagrama entre tensão e relaxamento. O filme nunca quis ser apenas um thriller; ou enfatizar apenas o aspecto farsesco do evento. Sempre o imaginei como uma aventura, onde tudo pode acontecer: situações tensas, cômicas, dramáticas, trágicas, até leves. Essa mistura se reflete no visual, na montagem e no desenho de som.
Que personagens monopolizam a situação?
O roteiro se concentra principalmente em duas figuras centrais: o negociador, o jornalista Paulo Ubiratan, improvisado nessa função pela urgência do momento, e o líder dos assaltantes, conhecido como Moreno. Ambos, hoje mortos, estão na narrativa no mesmo limbo que todos viviam na época, mas vêm de realidades profundamente distintas. Ao longo da narrativa, cada personagem passa por um processo de tomada de consciência. Surpreendentemente, percebem que, apesar das diferenças, têm mais em comum do que imaginavam. A trama explora essas convergências e tensões, atentando ainda para o reflexo coletivo de uma sociedade marcada pelo caos, pela desigualdade e pelas contradições. O foco não é apenas quem domina a ação, mas como essas vidas se entrelaçam, como os conflitos e paralelos humanos emergem mesmo em situações extremas. É um olhar sobre a humanidade de cada um, onde o drama se constrói a partir da empatia e da complexidade moral.
O que é menos difícil em cinema: comandar as cenas de ação ou as de violência?
No set, tudo exige a mesma atenção. Não existe hierarquia entre filmar isso ou aquilo, ambas dependem do mesmo estado de presença absoluta. O instante é tudo: estar atento, preparado, encontrar o ritmo certo de cada movimento e de cada reação. Dirigir é justamente isso: dar o melhor em cada situação, seja para construir uma explosão ou um silêncio carregado de drama. O que muda é a energia: algumas cenas pedem precisão coreográfica; outras pedem verdade emocional. Mas, no fundo, o desafio é o mesmo, fazer com que cada plano tenha sentido, que o público sinta a cena e não apenas a veja.
Há um gosto especial, em estar justo agora no Festival de Brasília?
Estar no Festival de Brasília tem um gosto especial, especialmente por ter me formado aqui. É poder revisitar o Brasil passado a limpo, refletir sobre memórias coletivas e perceber o quanto evoluímos e o quanto ainda há a conquistar, enquanto reafirmamos o lugar do cinema na cidade e na história do país. Brasília foi e continua sendo um território simbólico para todo brasileiro, e estar aqui é reafirmar que nossas histórias têm lugar, voz e eco.
FILMES DA NOITE No Cine Brasília (EQS 106/107), às 21h, exibição do longa Assalto à brasileira, de José Eduardo Belmonte. Sessão acompanha o curta Ajude os menor, de Janderson Felipe e Lucas Litrento. Ingressos, R$ 20 (inteira), a partir das 14h, na bilheteria, ou por ingresso.com No Complexo Cultural Planaltina, às 19h45, a mesma programação terá entrada livre.
Diversão e Arte
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