CULTURA

Paula Parisot expõe toda a força do feminismo latino-americano em Lisboa

Brasileira conta a história dela e a luta pelos direitos das mulheres por meio de desenhos, aquarelas, vídeos e instalações impactantes na Sociedade Nacional de Belas Artes. Mostra seguirá para Madri e, depois, para o Distrito Federal

Paula Parisot, artista brasileira -  (crédito: Vicente Nunes/CB/D.A. Press)
Paula Parisot, artista brasileira - (crédito: Vicente Nunes/CB/D.A. Press)
Vicente Nunes - Correspondente
postado em 09/02/2024 18:19 / atualizado em 09/02/2024 22:00

Lisboa — Logo que adentram o belíssimo prédio da Sociedade Nacional de Belas Artes, os visitantes levam um choque. Atraídos pela exposição da brasileira Paula Parisot, a primeira visão que eles têm é de uma enorme instalação batizada de “Útero”, que reflete toda a força da mulher. A peça havia cruzado o Atlântico ainda sem nome, mas, numa conversa com uma das responsáveis pela manutenção do museu, que fez uma leitura muito especial das obras, a artista não teve dúvidas em titulá-la. “Percebi que essa pessoa havia compreendido tudo o que eu queria passar com o meu trabalho”, diz Paula.

A exposição, a primeira individual da brasileira em Portugal, estreou no início de fevereiro e poderá ser vista, gratuitamente, até 9 de março. Denominada “Miragem”, — Espejismos, em espanhol —, a mostra contempla toda a carreira de Paula, que começou como escritora, ao lançar seu primeiro livro de contos, “A dama da solidão”, em 2007, adentrou para o mundo do audiovisual e das performances e se entendeu pelas artes plásticas. Ao longo de toda essa trajetória, a artista foi descobrindo a potência do feminismo latino-americano, que passou a ditar os rumos do seu trabalho. “Gosto de pensar o feminismo como se fosse um dicionário, um vocabulário”, afirma.

É no final do percurso da exposição, por sinal, que esse feminismo aparece de forma arrebatadora, por meio do inédito vídeo “DesConcerto”. Em vez de uma narrativa pessoal, Paula parte para o coletivo, em que se une a figuras icônicas de movimentos em defesa da mulher na América Latina. A obra conta com a participação da fotógrafa mexicana Tatiana Parcero, que registrou todas as manifestações de rua pró-aborto na Argentina e no México; da atriz argentina Thelma Fardin, estuprada aos 16 anos; da escritora Cecília Szperling, também argentina; da ativista brasileira Dani Santana; e da bailarina e coreógrafa Letícia Mazur. O roteiro destaca que, quando se trata de abuso, o silencio está sempre do lado do agressor.

“Todo mundo fala que, em casos de abusos sexuais, é preciso denunciar. Mas quando se decide ir à Justiça, descobre-se que o caminho é árduo dentro dos tribunais. A todo momento, repete-se tudo o que sofremos e só encontramos injustiça. Simplesmente, não existe nenhuma política de gênero dentro do processo judicial”, ressalta a artista. Não se trata, porém, de um problema restrito ao Brasil, é uma realidade em toda a América Latina. Ela lembra que, em 1994, foi assinado por todos os países da região o Acordo Belém do Pará, para a adoção de uma política de gênero e racial no Judiciário, mas nenhuma das nações signatárias cumpre o acertado. “Assim, num texto de um processo, pode-se insultar as mulheres. E estamos falando de advogados, procuradores e juízes”, acrescenta.

Paula recorre ao caso de Thelma, que se tornou um clássico de como a misoginia também está presente nas mulheres dentro do Judiciário. A juíza responsável pelo processo que tratava do estupro da atriz fez questão de ressaltar que ela já não era virgem aos 16 anos. Ainda perguntou que roupa Thelma estava vestindo quando foi violentada por um homem 30 anos mais velho do que ela. “Por isso, falo no vídeo, que, enquanto houver uma mulher machista e misógina, os homens estarão com Deus”, frisa.

Brasília, próxima etapa

Diante do sucesso da exposição, Paula já negocia apresentá-la em Madri, Espanha, e, na sequência, em Brasília. “Estou impressionada como a cena cultural de Brasília está vibrante. A nossa meta é expor os meus trabalhos na cidade ainda no segundo semestre de 2024”, anuncia. Em Lisboa, o público tem se surpreendido com as obras da brasileira, divididas em dois tons, azul e vermelho. “O azul, para mim, representa a liberdade, o tomar consciência de alguma coisa. Já o vermelho simboliza a raiva, a fúria”, detalha. Mas ela avisa: “Nem tudo é o que parece ser. Por isso, escolhi o título ‘Miragem’ para a mostra”.

A carioca, que mora em Buenos Aires há oito anos, conta que chegou à Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa por meio de Emília Tavares, que é curadora do Museu do Chiado. A instituição quer muito ampliar a relação com o Brasil. E como conhecia Paula do festival DOCLisboa — a brasileira havia apresentado, em 2018, a série de vídeos Crucigramista, a América Invertida —, decidiu convidá-la para a mostra que tem feito os portugueses refletirem. “Por meio da minha arte, conto histórias permeadas por tudo o que faço. Hoje, expresso isso por meio do que escrevo, dos desenhos, das aquarelas, dos vídeos. Já não tenho mais a angústia da juventude. Tudo que eu faço tem sentido”, explica.

A grande transição da carreira de Paula se deu em 2021, quando fez a exposição “A literatura do eu”, na Bienal Sur, em Buenos Aires. “Tive a certeza de que podia me expressar por meio de diferentes formas”, diz. Essa multiplicidade é ressaltada pelo curador da mostra, o carioca Victor Gorgulho. “Artista visual e escritora, Paula é autora de uma contundente prática que se dá por meios tão díspares quanto, insuspeitadamente, complementares”, frisa. Na visão dele, durante a mostra, realidade e ficção, “descompromissadas e caoticamente embrenhadas uma na outra, atingem o clímax que, após se arrefecer, logo reaparece para deleite” dos visitantes.

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