O universo fantástico de um conto de Gabriel Garcia Márquez no qual um ser alado cai no jardim de um humano ganhou um tempero distópico na montagem Velhos caem do céu como canivetes, da Pequena Companhia. O espetáculo desembarca em Brasília para temporada até 30 de novembro no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB).
Criada há 12 anos e em circulação pelo Brasil desde então, a peça é uma adaptação com dramaturgia do diretor Marcelo Flecha para o conto Um senhor muito velho com umas asas enormes, de Garcia Márquez. O projeto nasceu da vontade da companhia de trabalhar temas como miséria, fé e exílio. "Naquele momento, a gente estava muito focado nessa questão do desperdício, sustentabilidade e do quanto havia de miséria no mundo em oposição ao desperdício", conta Flecha. A Pequena Companhia sempre trabalhou com materiais sustentáveis nos cenários, figurinos e iluminação e essa característica foi incorporada à história de Velhos caem do céu como canivetes.
Em cena, um catador insiste no ofício de recolher lixo em um mundo pós-apocalíptico no qual fazer coleta seletiva já não tem função alguma. Tudo está irremediavelmente contaminado. "E essa falência social leva à miséria desse ser humano que dialoga com nossa realidade. Da mesma maneira, num processo de metáfora política, há esse isolamento do ser quando ele está vinculado a uma outra raiz, a uma outra realidade, e acaba sofrendo esse desterro", repara o diretor e dramaturgo. Argentino naturalizado brasileiro e radicado no país há 47 anos, Flecha confessa também ter incluído um viés autobiográfico na dramaturgia da peça. "Quem sai do seu lugar de nascimento passa a vida toda nesse não lugar. Não estou aqui, não estou lá, e essa ideia do exílio sempre me perpassou, era um tema que me era muito caro", diz.
A fé entrou para o cardápio com o tom fantástico da narrativa: o que fazer com as certezas quando o ser alado despenca do céu bem na frente do personagem? "O Gabo traz isso: com esse ser alado, a relação com a fé era inevitável. Quão ateu preciso ser para não enxergar fé quando um ser alado cai no meu quintal? O espetáculo faz essa provocação, deixa o espectador sempre no limiar de tentar identificar que ser maluco é esse", adianta o diretor.
Criada há 20 anos no Maranhão, a Pequena Companhia de Teatro tem como norteadora a pesquisa de temas que perpassam o social e, como explica Flecha, não trabalha com teatro naturalista realista. O estranhamento é o material de criação do grupo, uma maneira de provocar um olhar metafórico e trazer o espectador para um exercício de associações simplificadas."A gente vai nesse caminho da metáfora e do estranhamento para tirar o espectador da visão televisiva, desse lugar confortável da realidade. O teatro dá essa possibilidade e a gente se aproveita muito do Gabriel Garcia Márquez com essa ideia do estranhamento", avisa Flecha.
Serviço
Velhos caem do céu como canivetes
Com a Pequena Companhia de Teatro. De hoje a domingo, às 19h. Temporada até 30 de novembro, de quinta a domingo, no Centro Cultural Banco do Brasil Brasília (SCES Trecho 02 Lote 22). Ingressos gratuitos, mediante retirada no site www.bb.com.br/cultura e na bilheteria física do CCBB Brasília. Não recomendado para menores de 14 anos
