CONTAS PÚBLICAS

Crise entre Poderes pode causar mudança da meta fiscal

Deterioração fiscal, derrotas no Congresso e eleições pressionam o governo a alterar limites de deficit, advertem especialistas

O embate entre o Congresso Nacional e o governo que, na semana passada, ganhou mais um capítulo com a derrota do Executivo na derrubada do decreto do aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), acende a luz vermelha para uma crise fiscal que vem sendo antecipada e deve estourar no próximo ano, no meio das eleições.

Apesar de o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ter afirmado na sexta-feira (27/6) que não pretende mudar o arcabouço fiscal, o consenso entre analistas ouvidos pelo Correio é de que essa mudança na meta fiscal será inevitável em 2026, dado o estado calamitoso do desequilíbrio orçamentário. Na avaliação deles, o risco de apagão da máquina pública é real e iminente e, como a campanha eleitoral já foi antecipada, restará que o próximo governo assuma a missão de fazer um efetivo ajuste fiscal em 2027 para que o país não mergulhe novamente em uma crise econômica.

Aliás, esse risco de apagão foi reconhecido pela equipe econômica do ministro Haddad, pois técnicos admitiram essa possibilidade em 2027, quando o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) do ano que vem foi enviado ao Congresso em abril. Na proposta, o governo reconhece que as despesas obrigatórias devem atingir 100% das receitas primárias em 2027 e ainda deixam um buraco de R$ 118 bilhões de receitas incertas para o cumprimento da meta fiscal. O arcabouço prevê deficit primário zero neste ano e superavit primário (economia para o pagamento dos juros da dívida pública) no próximo.

Especialistas destacam que um dos principais problemas desse desequilíbrio fiscal é o aumento desenfreado de despesas sem fontes de receitas recorrentes — como é previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) —, na contramão da austeridade fiscal, mas isso não é exclusividade do governo atual.

Vale lembrar, ainda, que as contas públicas não melhoraram com o novo arcabouço, pois, se não fosse o desconto dos gastos com precatórios (dívidas judiciais) — permitido pela decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) uma vez que o atual governo está pagando o calote do governo anterior —, o arcabouço fiscal, criado em 2024, já teria sido descumprido no primeiro ano de vigência.

Conforme levantamento feito pela Instituição Fiscal Independente (IFI), a pedido do Correio, os gastos no terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva crescem em ritmo acelerado, acima da inflação. De janeiro a maio deste ano, as despesas totais saltaram 35,29% na comparação com o mesmo período de 2022, somando R$ 936 bilhões. Enquanto isso, a inflação oficial, medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), subiu 14,3% entre maio de 2022 e maio deste ano.

A falta de uma reforma da Previdência ampla em 2019 não freou o forte aumento dos gastos com benefícios previdenciários — uma das maiores dificuldades fiscais do governo —, pois essa despesa avançou 28,5% de janeiro a maio na comparação com os primeiros cinco meses de 2022. No mesmo período, a inflação acumulada foi de 14,3%. Os gastos com o Bolsa Família — que teve o valor ampliado no atual governo — e com Benefício de Prestação Continuada (BPC), por exemplo, saltaram, respectivamente, 85,8% e 65,5%, na mesma base de comparação. (Ver quadro)

"O governo vai ser obrigado a mudar a meta fiscal em 2026 e, no ano de 2027, será preciso fazer um ajuste significativo, talvez inédito nas pretensões. O tamanho da dívida pública que temos atualmente é resultado da piora esperada nos gastos obrigatórios por conta da Previdência, que demanda um novo ajuste", afirma Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados. Ele prevê que o governo precisará fazer bloqueio de despesa adicional neste ano para conseguir cumprir a meta fiscal neste ano e no próximo e reconhece que o governo terá dificuldades para encontrar receitas extraordinárias para fechar cumprir as metas fiscais.

"A meta fiscal será mudada em 2026 ou em 2027, porque, na verdade, haverá o abandono da regra fiscal, já que o governo não pode deixar à míngua os Três Poderes. Tem que pagar salário dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Tem que prover recursos para educação e saúde e o mínimo de investimento. Se os cálculos estiverem certos, eu acredito que estão, porque foram pioneiramente feitos e o governo assumiu esse diagnóstico no PLDO de 2026", destaca o economista Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda e sócio da Tendências Consultoria. Ele lembra que a rigidez orçamentária é um dos fatores desse quadro crítico que caminha para a "calamidade fiscal", que antes era previsto para 2032 e pode ocorrer no próximo ano, ou, no mais tardar, em 2027.

"Eu diria que é inevitável o fracasso do arcabouço fiscal, do mesmo jeito que foi o fracasso do teto de gastos. Ambos padecem da mesma, digamos assim, doença: a ausência de margem para fazer ajustes. O teto de gastos só seria viável se houvesse reforma estrutural para flexibilizar a gestão do Orçamento. Como não teve, à medida que os gastos obrigatórios foram invadindo o espaço dos gastos dos discricionários, o teto de gastos começou a ficar inviável, do ponto de vista social e político", afirma Maílson. "O arcabouço fiscal vai no mesmo caminho. Não é questão de má gestão, de erro de política econômica, mas é uma realidade imposta por uma rigidez orçamentária sem paralelo no mundo", explica.

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Credibilidade

Hugo Garbe, professor de Ciências Econômicas da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), também aposta na mudança na meta fiscal no próximo ano, especialmente após a rasteira do Congresso no Executivo com a derrubada do decreto do IOF. "O problema é que quando se fala de economia estamos falando, também, da expectativa das pessoas e das empresas. E o governo não vem passando credibilidade no que tange à condição da política econômica/política fiscal. O que tem acontecido é que, inicialmente, o governo vai tomar ações com base no improviso. E o caso do IOF é um exemplo claro disso, porque a Fazenda voltou atrás após o primeiro anúncio e, agora, levou um reverso no Congresso. Ficou muito feio para o Executivo", frisa.

Segundo ele, o fato de a agenda de redução de despesas não ser discutida tende a afugentar os investimentos, que seguem baixos em relação ao PIB, girando em torno de 16%, quando a taxa ideal seria de 25%. "A taxa de investimento ainda é baixa em proporção ao PIB e está nos níveis mais baixos dos últimos 20 anos. E isso é um dos principais pontos", alerta.

Legislativo contraditório

Enquanto o quadro fiscal fica cada vez mais crítico, o Legislativo aproveita para criar mais despesas para o governo que ajudam a antecipar esse apagão iminente, como a derrubada do decreto do IOF e o aumento de cadeiras na Câmara dos Deputados de 513 para 531. E, para piorar, parlamentares também prejudicam o bolso dos consumidores com o veto presidencial aos jabutis (emendas não relacionadas à matéria) na Lei das Eólicas Offshore (em alto mar), que encarece a conta de luz.

Contraditoriamente, os parlamentares adotam o discurso de crítica ao governo de que não faz corte de gastos e cobram o pagamento de emendas sem transparência que chegam superam R$ 50 bilhões — respondendo por 25% dos gastos discricionários (não obrigatórios), ajudando a limitar o espaço de manobra do governo e percentual que não existe em nenhum lugar do mundo, de acordo com especialistas. Eles lembram que o espaço das despesas discricionárias, que representam 4% do gasto primário do Orçamento — excluindo os pagamentos de juros —, será engolido pelos desembolsos obrigatórios no próximo ano devido aos descompassos recentes entre Legislativo e Executivo.

"O ambiente brasileiro favorece esse tipo de posicionamento, porque os parlamentares não têm, aos olhos da sociedade, a responsabilidade social. Ou seja, eles podem arrebentar o Orçamento, rejeitar medidas necessárias para se popularizar. Mas, na verdade, quando algo dá errado, o culpado é sempre o presidente da República. A população brasileira não associa, salvo algumas exceções, a irresponsabilidade fiscal ao Congresso", pontua Maílson.

Juros crescentes

O desequilíbrio fiscal afeta diretamente os juros, não apenas dos títulos públicos que são emitidos para cobrir os sucessivos rombos fiscais. A certeza de que as contas públicas podem colapsar a qualquer momento está dificultando o trabalho do Banco Central em controlar a inflação e obriga a autoridade monetária a manter a taxa básica da economia (Selic) em patamares elevados, de 15% ao ano, atualmente — o mais alto dos últimos 19 anos —, porque, de acordo com dados do próprio BC, o fator fiscal tem um peso maior do que no passado.

No acumulado em 12 meses até abril, a conta de juros nominais somou R$ 928 bilhões — quase o triplo do valor registrado em 2020, de R$ 312,7 bilhões, em meio à pandemia e quando a taxa Selic estava em 2% ao ano. Esse montante é praticamente igual ao volume de pagamentos das despesas primárias de janeiro a maio — R$ 936 bilhões. Membros e apoiadores do governo costumam culpar os juros da dívida pública como um dos fatores que têm contribuído para o desequilíbrio fiscal, mas se esquecem de explicar por que essa conta cresceu de forma tão acelerada.

"O risco fiscal afeta as expectativas e aumenta a percepção de risco. E se o risco aumenta, o prêmio exigido pelos credores da dívida pública e os juros aumentam", explica Maílson da Nóbrega. Segundo o ex-ministro da Fazenda, dois fatores contribuem para que essa conta de juros esteja beirando R$ 1 trilhão. "O primeiro é a situação fiscal insustentável e os riscos que isso traz, em um momento qualquer, uma incapacidade do governo de pagar a sua dívida. Então, os mercados exigem um prêmio por isso. E, em segundo lugar, a menor potência da política monetária devido à existência em dose muito alta de crédito direcionado, ou seja, aquele crédito que não é sensibilizado pelo aumento da Selic", explica.

Ele destaca que 42% do crédito no mercado é subsidiado de alguma forma pelo governo, neutralizando o impacto do aumento da taxa Selic na economia, mas ele reconhece que esse percentual já foi maior, de 50%. "Por isso, é preciso uma taxa de juros maior para o efeito na economia de baixar a inflação que, como a gente sabe, é prejudicial, particularmente, aos mais pobres. Por isso, não adianta falar mal da taxa de juros sem entender as razões porque ela é tão alta."

Ajuste amplo e necessário

Analistas ressaltam ainda que o governo pode até ter conseguido cumprir o arcabouço fiscal neste ano, mas como as contas seguem deficitárias, a dívida pública bruta só aumenta, devendo superar 100% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2030, pelas projeções da Instituição Fiscal Independente (IFI). A entidade, inclusive, não prevê superavit primário (economia no pagamento dos juros da dívida pública) até 2035, em todos os cenários projetados, inclusive o otimista. Não à toa, a entidade defende uma reforma estrutural para evitar o colapso das contas públicas.

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“Nas nossas estimativas, seria necessário um contingenciamento, em 2026, de R$ 75,9 bilhões para o cumprimento da meta no piso da banda de tolerância, o que deixaria a execução das despesas discricionárias em nível inferior ao mínimo necessário para funcionamento da máquina pública”, alerta Alexandre Andrade, diretor da IFI. Ele reforça o alerta da necessidade de uma reforma estrutural para evitar o colapso do arcabouço fiscal.

De acordo com especialistas, o ajuste fiscal amplo como é esperado, não vai acontecer neste ano e, muito menos, em 2026, que é ano eleitoral, porque as medidas necessárias são impopulares. O cardápio de medidas de cortes de gastos é conhecido, e basta vontade política, segundo eles. O consenso deles é que será preciso uma reforma da Previdência mais ampla, incluindo militares e equalização das idades das aposentadorias dos sistemas público e privado em função, principalmente, da expectativa de vida da população. Outra medida polêmica e necessária, segundo eles, é a desindexação de benefícios ao salário mínimo — que voltou a ter ganho real (acima da inflação), que poderia gerar um impacto fiscal inicial de R$ 15 bilhões no primeiro ano, podendo chegar a 1% do PIB pelas estimativas do Banco Mundial. 

Eles lembram ainda que o corte de subsídios pela metade, como era previsto na emenda do teto de gastos ao longo de 10 anos que seriam completados em 2026, não ocorreu e o que aconteceu foi o contrário. Essa fatura praticamente dobrou de tamanho, chegando aos R$ 800 bilhões citados pelo ministro Fernando Haddad. 

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O economista Gabriel Leal de Barros, economista-chefe da ARX Investimentos, crítico ao arcabouço fiscal desde o início, destaca que, como a regra fiscal não consegue mais parar em pé, o governo seguirá evitando ajustes estruturais até 2027. “O arcabouço está dando problema, porque precisa de um volume grande de receitas extraordinárias, em torno de R$ 150 bilhões por ano. O governo conseguiu isso em 2023 e em 2024, mas não está conseguindo neste ano e, dificilmente conseguirá em 2026”, afirma.

A derrubada pelo Congresso Nacional dos decretos presidenciais que alteraram a legislação do IOF só piorou o quadro e “traz mais incerteza sobre o quadro fiscal de 2026 e sobre o cenário político de curto prazo, do que sobre a política fiscal neste ano”, segundo Jeferson Bittencourt, head de macroeconomia do ASA.

Para ele, ao acionar o Supremo para tentar derrubar a decisão do Congresso, o Executivo “parece andar no sentido contrário da conciliação necessária, até para a aprovação de projetos importantes para o governo que estão no Legislativo, como projeto de lei que isenta do Imposto de Renda quem ganha até R$ 5 mil, o PL 1.087/2025. “A questão que fica é se a indisposição do Congresso com o Executivo levará, no ano eleitoral, a uma postura tão resistente à elevação de despesa como foi com a elevação da carga tributária”, acrescenta. 

 

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