
O setor nuclear brasileiro vive uma encruzilhada. Após décadas de avanços tecnológicos interrompidos por entraves administrativos, a venda da Eletronuclear — responsável pelas usinas de Angra 1, 2 e 3 — ao grupo Âmbar Energia, ligado ao conglomerado J&F, marca o início de um novo ciclo.
O negócio promete destravar a conclusão de Angra 3, paralisada há 10 anos, e reposicionar a energia nuclear como peça-chave na estratégia de descarbonização do país. Ao mesmo tempo, evidencia os persistentes gargalos de governança e financiamento que ainda ameaçam a estabilidade do setor.
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Atualmente, as empresas nucleares públicas enfrentam sérias dificuldades operacionais e financeiras. Em entrevista ao Correio, Celso Cunha, presidente da Associação Brasileira para o Desenvolvimento de Atividades Nucleares (Abdan), analisa os problemas de governança das estatais, o impacto da venda da Eletronuclear, os desafios regulatórios e de financiamento, e o papel da energia nuclear na matriz de baixo carbono.
Apesar dessas dificuldades, o Brasil ocupa uma posição estratégica, sendo um dos poucos países do mundo que domina todo o ciclo do combustível nuclear, com grandes reservas de urânio e conta com um mercado interno em expansão. Cunha detalha como o segmento pode revolucionar a oferta energética, apoiar setores como mineração, siderurgia e data centers, e consolidar o país como líder em tecnologia nuclear na América Latina. Confira os principais trechos da entrevista.
O setor nuclear brasileiro vem enfrentando sérios problemas de governança. O que está acontecendo?
Temos um problema estrutural nas empresas públicas do setor. A INB (Indústrias Nucleares do Brasil), o Complexo do Ciclo do Combustível Nuclear (FCN) e a Eletronuclear sofreram sucessivas trocas de dirigentes, muitas vezes por razões políticas, e nem sempre os novos gestores conhecem a área. Isso desorganiza o planejamento, gera atrasos, contratos mal executados e decisões desalinhadas com a realidade técnica. O resultado é um prejuízo enorme à eficiência e à credibilidade do setor nuclear brasileiro.
Como essa fragilidade impacta a Eletronuclear especificamente?
De forma muito direta. A Eletronuclear vive uma situação crítica, precisa de R$ 1,4 bilhão até novembro apenas para honrar compromissos de curto prazo. Além disso, o custo de manter o canteiro de obras e os equipamentos de Angra 3 é altíssimo, entre R$ 1 bilhão e R$ 2 bilhões por ano. Isso ocorre porque as garantias internacionais precisam ser mantidas, sob pena de perdermos equipamentos avaliados em bilhões de reais. E tudo isso acontece num ambiente de gestão frágil e sem estabilidade de comando.
Nesse contexto, a venda da Eletronuclear ao grupo Âmbar Energia muda o cenário?
Sim, e de forma positiva. A Eletrobras já havia deixado claro que não queria permanecer no setor nuclear. Era uma situação incômoda: uma empresa acionista que não queria estar ali. Agora, com a Âmbar, temos um investidor que quer investir, que declarou publicamente o interesse em concluir Angra 3 e construir novas usinas. É um grupo com fôlego financeiro, experiência em recuperação de ativos e capacidade de articulação política, algo essencial num setor tão regulado quanto o nuclear.
Há uma certa urgência, a empresa precisa de caixa antes da conclusão da transação. Como resolver isso?
Esse é o ponto crítico. A venda não se conclui da noite para o dia, são meses de documentação, ajustes regulatórios e avaliações financeiras. Mas a Eletronuclear precisa de recursos imediatos para não colapsar. É fundamental que o governo e o novo controlador encontrem uma solução de transição, um modelo híbrido para garantir liquidez e manter a manutenção de Angra 3 até o fechamento do negócio.
Sobre a necessidade de modernizar o marco regulatório. Quais mudanças são, na prática, mais urgentes?
O principal ponto é permitir de forma clara a participação do setor privado na construção e operação de usinas nucleares. Hoje, há dúvidas jurídicas, alguns entendem que o privado pode construir, mas não operar. Isso afugenta investidores. Estamos falando de projetos de US$ 5 bilhões por planta, ninguém vai colocar esse volume de dinheiro sem segurança jurídica. O marco precisa ser claro, moderno e estável, como aconteceu com o setor elétrico em geral.
O Brasil domina o ciclo do combustível nuclear. Qual o potencial dessa vantagem?
Gigantesco. O Brasil é um dos poucos países que detêm a tecnologia completa, do urânio bruto até o combustível enriquecido. A Marinha, por exemplo, está concluindo o projeto para produzir urânio enriquecido em escala industrial para o submarino de propulsão nuclear. Isso nos coloca em um grupo restrito de países e abre espaço para exportar tecnologia, combustível e até participar de cadeias internacionais de suprimento.
A energia nuclear deve ser tratada como vetor de descarbonização? Como isso se traduz na prática?
A energia nuclear é limpa, estável e densa. Uma única usina pode gerar grandes volumes de energia sem emissão de carbono e próxima aos centros consumidores. Além disso, novas tecnologias permitem múltiplos usos, os reatores podem produzir hidrogênio verde, gerar calor industrial para siderurgia e até dessalinizar água. É a base firme necessária para complementar eólica, solar e hidrelétrica, que são intermitentes. Não existe transição energética consistente sem uma fonte de base limpa, e essa é a nuclear.
Tem crescido o interesse pela instalação de data centers no Brasil, o que demanda energia firme e limpa. A energia nuclear pode atender esse segmento?
Sem dúvida. Os data centers são o novo desafio energético do mundo digital. Cada centro de dados de grande porte consome energia equivalente a uma cidade de 100 mil habitantes e precisa operar 24 horas por dia, com estabilidade absoluta. As fontes renováveis intermitentes, como solar e eólica, não garantem essa segurança sozinhas. A nuclear é a solução ideal. É limpa, previsível e pode operar continuamente por décadas. Com os pequenos reatores modulares (SMRs) e os microreatores, essa integração se torna ainda mais viável. Esses reatores podem ser instalados próximos aos data centers, reduzindo perdas na transmissão e assegurando autonomia energética. Grandes empresas de tecnologia, como Google, Microsoft e Amazon, já estudam contratos de fornecimento com projetos nucleares nos Estados Unidos e na Europa. O Brasil pode seguir o mesmo caminho, oferecendo energia estável e livre de carbono para impulsionar a economia digital e a inteligência artificial.
Os pequenos reatores modulares (SMRs) e microreatores são parte dessa nova fase?
Sem dúvida. Os SMRs estão em desenvolvimento no mundo todo e devem entrar em operação em escala comercial entre 2027 e 2033. São reatores montados em fábrica, transportados prontos e instalados em campo, com altíssimo padrão de segurança. No Brasil, eles podem atender sistemas isolados, como comunidades amazônicas, polos industriais e até plataformas de petróleo. Um microreator, por exemplo, pode operar por 10 a 12 anos sem reabastecimento e fornecer energia contínua a regiões remotas.
A Abdan defende que o Brasil realize leilões de energia nuclear, nos moldes das demais fontes. Por quê?
Porque já temos maturidade tecnológica e demanda para isso. Hoje, uma usina nuclear tem custo competitivo. Angra 3, mesmo com todos os problemas, deve entregar energia a cerca de R$ 654 por megawatt-hora. Uma bateria de longa duração custa em torno de R$ 1.200 por MWh. Então, por que não incluir a nuclear nos leilões, ao lado da solar, eólica e gás? É uma fonte firme, limpa e previsível. Isso traria racionalidade ao sistema elétrico.
Como essa expansão poderia afetar o preço da energia para o consumidor final?
De forma positiva. A estabilidade que a nuclear oferece reduz o uso de térmicas caras e as bandeiras tarifárias. É uma energia de longo prazo, uma usina nuclear dura 100 a 120 anos. Ela atravessa gerações, dilui custos e garante previsibilidade. Diferente da solar, que tem vida útil de 15 a 20 anos. E, futuramente, com o avanço da fusão nuclear, que já começa a sair do laboratório, o custo tende a cair ainda mais.
E quais são as prioridades do setor nuclear hoje?
Em primeiro lugar, melhorar a governança do setor público e resolver o marco legal. Sem isso, o investimento privado não entra. Depois, concluir Angra 3, apoiar os pequenos reatores e garantir que o planejamento energético de longo prazo — o PDE (Plano Decenal de Expansão de Energia) 2035 e o PNE (Plano Nacional de Energia) 2055 — contemple a expansão nuclear. Também queremos discutir o fim dos subsídios cruzados e das bandeiras tarifárias, que apenas mascaram a falta de planejamento do sistema.
O senhor acredita que o Brasil está preparado para aproveitar o novo ciclo global da energia nuclear?
O Brasil tem todos os recursos: urânio, tecnologia, demanda e investidores interessados. Mas falta ação coordenada. Se resolvermos a governança e o marco legal, poderemos ser líderes regionais em tecnologia nuclear e fornecedores de combustível. Se não resolvermos, corremos o risco de ver o setor naufragar. Temos bilhões de dólares em reservas e uma fonte limpa e segura que pode transformar a nossa matriz. Só falta vontade política e estabilidade institucional.

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