VISÃO OLÍMPICA

Maria Portela: bastidores da derrota no judô que indignou o Brasil

A gaúcha de 33 anos chegou ao Japão como forte candidata ao pódio na categoria até 70kg, mas, aos prantos, se despediu do lendário tatame nipônico na segunda luta

João Vítor Marques
enviado especial a Tóquio*
postado em 28/07/2021 23:25 / atualizado em 28/07/2021 23:26
 (crédito: Divulgação/COB)
(crédito: Divulgação/COB)

O templo sagrado do judô japonês se propõe a ser uma perfeita simbiose das tradições seculares da modalidade e do avanço tecnológico pela justiça desportiva. No Nippon Budokan, o soar do gongo - substituído por um botão na mesa do DJ - desencadeou duas reações dos perdedores que se repetiram ao longo das finais dessa quarta-feira (28/7). Primeiro, o apelo ao VAR como forma de postergar ou evitar uma derrota. Em seguida, o choro instantâneo de quem deixou escorrer pelas mãos o sonho de ser campeão olímpico em Tóquio. Foi o que aconteceu com Maria Portela.

A gaúcha de 33 anos chegou ao Japão como forte candidata ao pódio na categoria até 70kg, mas, aos prantos, se despediu do lendário tatame nipônico na segunda luta. Na estreia, passou sem dificuldades por Nigara Shaheen, afegã radicada na Rússia que competiu pelo time de refugiados. As oitavas de final reservavam uma adversária de alto nível: a russa Madina Taimazova.

A luta foi tensa desde o início e subiu de temperatura com o início do golden score após o empate no tempo regulamentar. Durante a morte súbita, Portela conseguiu derrubar Madina, mas o árbitro Everardo Garcia não assinalou o wazari, decisão polêmica muito questionada por nomes históricos do judô brasileiro. Quando o confronto se aproximava do 15º minuto - duração recorde até então nos Jogos Olímpicos de Tóquio -, a brasileira foi considerada perdedora por falta de combatividade.

Foi o sinal para que as lágrimas começassem a escorrer. “Eu estou muito triste por não ter conseguido seguir na competição, mas agradeço a Deus por ter chegado até aqui e a todos aqueles que tiveram comigo nessa preparação para os Jogos Olímpicos para que eu chegasse aqui da melhor forma possível”, lamentou a judoca brasileira em entrevista pouco após o combate.

A emoção de Maria Portela comoveu torcedores e ex-judocas. “Uma vida dedicada ao sonho olímpico, e o árbitro após 10 minutos de Golden score definir a luta dessa forma. Deixa os atletas decidirem. Sem contar o wazari que foi nítido antes. Força, Maria Portela, você é nossa vencedora”, declarou Luciano Correa, campeão mundial de judô em 2007.

“Nunca gostei de falar da arbitragem, mas meu Deus, o que foi essa luta? Wazari não marcado e uma punição muito injusta!”, lamentou João Derly, duas vezes campeão do mundo. “Esse árbitro já acabou com o meu sonho nos jogos Pan-Americanos de Toronto trocando o shido faltando segundos para acabar a luta. Agora, nos Jogos Olímpicos fazer uma coisa dessa, acabar com o sonho de um atleta”, desabafou Alex Pombo.

Por mais polêmica que seja a decisão da arbitragem no judô, não é possível contestá-la. À reportagem, o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e a Confederação Brasileira de Judô (CBJ) confirmaram a impossibilidade de pedido de revisão. "Foi uma decisão bem polêmica, mas pessoalmente penso que poderia ter marcado (o wazari que daria a vitória a Portela)", comentou o chefe nacional da modalidade em Tóquio, Ney Wilson, em contato com o Superesportes.

Em entrevista após a dura derrota, a gaúcha de 33 anos assumiu a responsabilidade e preferiu não culpar a arbitragem. “O árbitro, se a gente não define, ele tem que definir. E quem tiver um pouco mais de iniciativa, vai levar. Não foi culpa dele. Eu tinha que ter sido mais agressiva, imposto mais o ritmo, por mais que não fosse efetiva, que foi o que ela fez e acabou levando”, disse.

Portela começou a chorar assim que a oponente foi declarada vencedora da luta. Depois de deixar o tatame, enxugou as lágrimas e já mirou a disputa por equipes. “Agora quero ajudar a equipe para chegar no pódio. Sei que meu ponto é muito importante e o foco é esse, contribuir para que possamos evoluir na competição porque somos um time muito forte”, completou.

Do outro lado...

Eram 18h e o sol já baixava no belo Parque Kitanomaru. Ali, no coração de Tóquio, perto do Palácio do Imperador e do Santuário Yasukuni, é onde fica o Budokan. O local, construído para os Jogos Olímpicos de 1964, conserva a energia espiritual do judô. Do lado de dentro, o espaço para quase 15 mil torcedores estava barulhento, apesar de quase vazio.

Pelas arquibancadas, bandeiras de países como Japão, Uzbequistão, Geórgia, Croácia e Alemanha eram expostas e balançadas a todo momento. As instruções dos técnicos eram confundidas com os gritos dos atletas que não competiam aquele dia, mas ali estavam para apoiar os amigos.

No tatame, o tempo parecia parar para a Madina Taimazova - algoz de Maria Portela - e a japonesa Chizuru Arai. Por cerca de 17 minutos, todos os olhos estavam vidrados num mesmo ponto. Até voluntários, funcionários do Budokan e policiais militares japoneses haviam abandonado seus respectivos postos para acompanhar a batalha mais longa do judô nesta edição de Jogos Olímpicos.

Madina estava combalida. Depois de ser fortemente exigida no duelo contra a brasileira, ela havia superado a grega Elisavet Teltsidou em pouco mais de 30 segundos. A exaustão física, porém, era evidente. O olho direito estava tão inchado que praticamente não abria. No rosto e no pescoço, as marcas vermelhas eram a materialização do cansaço e do sofrimento.

Mas Madina não desistiu. A cada paralisação da arbitragem, a russa tomava ar, mirava para as arquibancadas como se estivesse buscando forças do além e se concentrava na luta contra a atleta que, minutos depois, seria campeã olímpica. Mas passar pela algoz de Portela não foi nada simples. Empurrada pelos gritos das arquibancadas, a japonesa contou com o VAR para evitar a derrota e conseguiu um ippon salvador.

Quando Arai foi declarada vencedora e saiu do tatame, Madina estava quase desmaiada e ainda não havia conseguido se levantar. Com apoio dos médicos, ela deixou o local e precisou receber atendimento. “Era impossível eu deixar de competir por causa da lesão. É claro que está doendo, mas eu esqueci que meu olho e meu estômago estão doendo e concentrei na luta. Na segunda luta (contra Maria Portela), ela me machucou com o cotovelo. A cada luta, a dor ficava ainda pior”, relatou, aos prantos.

E Madina não desistiu. Claramente sem condições ideais para lutar, a russa foi ao tatame para mais um golden score. Desta vez, foram menos de sete minutos para superar a croata Barbara Matic e coroar uma trajetória histórica com a medalha de bronze. “Meu treinador e todo mundo do meu time me disseram para esquecer tudo, me deram o maior apoio possível e disseram para que eu fosse buscar a medalha e desse o meu melhor. Eu tentei esquecer meus erros, deixar a semifinal para trás e seguir em frente”, conta.

“Eu me concentrei nas oponentes, nas lutas, na disputa. Eu não pensei em nada além disso, não pensei nas dores, lesões. Acho que amanhã meu corpo inteiro vai doer. Durante a luta, eu não pensei em nada disso. Fiz o melhor para conseguir uma medalha e sair vencedora. Eu não podia desistir”, completou.

Entre os jornalistas russos, Madina foi comparada com Rocky Balboa, lutador de boxe que é personagem de uma série de filmes produzidos nos Estados Unidos. Madina nunca os assistiu. Mas sabia muito bem quais ensinamentos deveria seguir.

* João Vítor Marques é o enviado especial do Grupo Diários Associados a Tóquio. Informações completas sobre os jogos você pode acompanhar no especial Olimpíadas de Tóquio 2020.

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