
Câmeras analógicas, livros para colorir, gravadores e baralho são os objetos que os alunos levam para a escola após a proibição do uso de celulares. Desde a implementação da lei, professores têm observado mudanças no comportamento dos jovens, que estão se adequando à nova rotina e explorando a criatividade para encontrar outras maneiras de interagir nos intervalos, assim como gravar as aulas e até fotografar o quadro para anotar as informações depois.
Alunos relatam prestarem mais atenção às aulas e se conectarem melhor com os colegas desde a implementação da lei, como conta Maria Cecília Monteiro, 15 anos, do Centro de Ensino Médio Escola Industrial de Taguatinga (Cemeit). "Tenho certeza de que, se eu pudesse, estaria mexendo no celular toda hora, com vontade de responder a alguém, mandar vídeo para amigos nas redes sociais", afirma.
Com cerca de 2,3 mil alunos matriculados, o Cemeit figura no último levantamento do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica do Brasil (Ideb) entre as dez melhores escolas públicas e privadas do DF, e o primeiro lugar entre as escolas de Taguatinga. A instituição oferece Ensino Médio Regular (Novo Ensino Médio), e Ensino Médio em Tempo Integral (EMTI), além do programa EJA (Educação de Jovens e Adultos). Neste ano, o total é de 40 turmas, sendo 20 no matutino e 20 no vespertino. Dessas, quatro são integrais. Por série, são 14 turmas de 1° anos, 15 turmas de 2° anos e 11 turmas de 3° anos.
Uma das dificuldades com a implementação da lei tem sido adaptar a comunicação entre os alunos e os pais, avalia o diretor do Cemeit, Gabriel Souza. Ele avalia que, desde o início das aulas, aumentou significativamente a demanda de ligações de responsáveis, que questionam como vão se manter em contato com os filhos em caso de emergência ou necessidade. "Se acontecer alguma coisa, nós vamos, primeiro, acionar a emergência, e também os pais, para que eles fiquem cientes da ocorrência. O maior desafio é a questão de como vai acontecer a comunicação agora", diz Gabriel.
Segundo o diretor, a escola sempre desenvolveu atividades para promover a interação e criar um ambiente saudável para os alunos. "Favorecemos a convivência entre eles, os espaços de diálogo, de roda de conversa, até mesmo de desabafo. Aqui, eles participam do conselho de classe, por exemplo, e avaliam os professores. A gente sempre incentivou esse entrosamento", garante. Entre os projetos da unidade de ensino, está o Grupo de Enfrentamento à Depressão e ao Suicídio Gerando Amor, focado no tema da saúde mental, uso de celulares e exposição em redes sociais.
A Secretaria de Educação (SEEDF) informou que as escolas da rede pública do DF estão em processo de adaptação à norma que restringe o uso de aparelhos eletrônicos portáteis pelos estudantes nas unidades escolares. Segundo a pasta, professores e gestores identificaram um aumento na concentração dos estudantes e um fortalecimento das interações sociais, promovendo um ambiente mais propício para as aprendizagens.
A secretária de Educação, Hélvia Paranaguá, avalia que a mudança tem sido positiva e destaca o apoio das unidades escolares na implementação da medida. "Os primeiros dias mostraram que a adaptação é um processo, mas já percebemos um maior engajamento dos alunos nas atividades. O diálogo constante com a comunidade escolar tem sido essencial para esclarecer dúvidas e reforçar os benefícios dessa ação", afirma a chefe da pasta.
Para minimizar desafios, a SEEDF tem investido em alternativas para preencher os momentos de intervalo e lazer. Muitas escolas ampliaram o uso de bibliotecas, quadras esportivas e espaços de convivência, além de incentivar projetos culturais e atividades recreativas. A medida tem sido bem recebida por educadores, que relatam um ambiente mais produtivo nas escolas. A pasta cita exemplos de ações nas escolas, entre elas, no próprio Cemeit.
Outras práticas mencionadas são as do Centro de Ensino Fundamental (CEF) 1 da Candangolândia, que adotou uma matéria da Unidade Curricular de Práticas Diversificadas sobre as consequências do uso excessivo de telas por estudantes. Também promove o Projeto Namoral, em parceria com o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), que trabalha valores como cidadania e ética, e promove a convivência saudável.
O CEF 407 de Samambaia realiza rodas de conversa de conscientização nas salas de aula e nas reuniões com os pais.
Rede privada
Na rede privada, a percepção não é diferente. Fábio Camargos, coordenador disciplinar do Centro Educacional Leonardo da Vinci, considera ter notado maior interação entre os estudantes. No fim do ano passado, a escola adquiriu mais bolas, mesas de pingue-pongue, de xadrez, bambolê e cordas de pular. Além dessas novidades, os próprios alunos encontraram formas de ocupar o tempo. "Presenciei, por exemplo, um grupo brincando de roda, algo que há muito tempo não via. Eles estão, agora, correndo e brincando com sorrisos nos rostos", afirma.
Fundado em 1969 e com três unidades (Asa Sul, Asa Norte e Taguatinga), o Leonardo da Vinci atende mais de 3 mil alunos e é considerado uma das escolas mais tradicionais de Brasília, abrigando turmas do 1º ano do Ensino Fundamental à 3ª série do Ensino Médio e Educação Especial. O Leonardo da Vinci já restringia o uso de celulares em sala de aula. Com a lei, a novidade é que os aparelhos foram proibidos em todas as dependências do colégio. "Tivemos algumas reuniões no fim do ano, pensando em estratégias e possíveis desafios dessa determinação, mas estamos nos surpreendendo com a aceitação dos estudantes", diz Fábio.
Para o coordenador disciplinar do Leonardo da Vinci, a boa recepção da nova lei se deve ao amplo debate feito pela sociedade e entre as famílias. "No ensino fundamental, não tivemos problemas, já no médio houve maior insistência para o uso dos celulares, mas passamos nas salas dando orientações e o retorno tem sido bom", assinala, otimista, o coordenador disciplinar.
Ainda segundo ele, os resultados positivos têm sido visíveis principalmente no Ensino Fundamental 2, no qual os alunos começaram a interagir mais e a demonstrar maior empatia. "Os professores constataram que, com o telefone distante, os estudantes conseguem focar nas aulas e prestar mais atenção", revela Fábio. O docente acrescenta que há uma parceria muito grande com a família, que entende e apoia essa mudança.
"Percebemos os alunos conversando olho no olho. Esse aspecto é muito favorável para terem uma convivência saudável. O objetivo, a longo prazo, é fazê-los perceber que o uso do celular faz muita diferença, para melhor, no ambiente escolar", complementa Nilce Macedo, diretora pedagógica do Leonardo da Vinci.
Receptividade
Yasmin Sampaio, 16 anos, da segunda série do ensino médio no Leonardo da Vinci, diz que, em situações corriqueiras, como tirar foto do quadro ou fazer pesquisas rápidas, a nova norma tem exigido mais paciência. "Percebo que alguns colegas que usavam materiais digitais, como tablets, tiveram que reorganizar seus programas de estudos e trocar suas metodologias. Algumas pessoas levam um tempo para voltar a se acostumar com papel e post-its, mas creio que essa mudança não vai trazer prejuízos", pondera.
Ao invés das telas, é o baralho que distrai Yasmin e os colegas nos intervalos. As partidas, antes proibidas, foram liberadas. "Era uma demanda antiga nossa, afinal, os jogos de cartas ajudam a integrar os novatos. Antes, eles ficavam excluídos e, agora, com a brincadeira, há a quebra da hostilidade", observa.
A estudante do 3º ano Luísa Quintão Frade, 17 anos, concorda que houve aumento de foco nas aulas, mas confessa sentir falta do telefone. "Acho que o celular ajudava na interação quando era possível compartilhar alguma postagem ou música. Agora, tenho falado mais com meus amigos, olho no olho, porque não sou do esporte", conta a jovem, aos risos. Seria interessante, segundo ela, incluir atividades culturais nos intervalos, como saraus. "Música, por exemplo, dá um ânimo. Podemos até sentir vontade de dançar", sugere.
O debate sobre o controle do acesso às telas ganhou força nas últimas semanas, com o lançamento da série Adolescência, da Netflix, que trata de redes sociais, bullying e violência em um dos períodos mais frágeis da formação humana. Para a doutora em ciências da educação e psicopedagoga, Cristiane Souza, a produção evidencia como a comunicação digital pode ser distorcida. "A restrição do uso de celulares em sala de aula pode ser uma estratégia valiosa para reduzir essas práticas nocivas", defende a especialista.
*Estagiária sob supervisão de Malcia Afonso
Palavra de especialista
Cristiane Souza, doutora em ciências da educação e psicopedagoga
Na série Adolescência, o ambiente virtual se transforma em um campo de batalha para jovens que enfrentam o bullying e a misoginia, muitas vezes disfarçados por emojis e mensagens que parecem inocentes à primeira vista. Esse fenômeno evidencia como a comunicação digital pode ser distorcida, permitindo que atitudes prejudiciais se espalhem rapidamente, muitas vezes sem a percepção imediata de suas consequências.
A restrição do uso de celulares em sala de aula pode ser uma estratégia valiosa para reduzir essas práticas nocivas. Ao limitar o acesso a dispositivos que facilitam o cyberbullying, os educadores podem criar um ambiente mais seguro e propício ao aprendizado, onde as interações pessoais são encorajadas. Essa abordagem também pode ajudar a conscientizar os alunos sobre a importância da empatia e do respeito nas interações, tanto online quanto offline. Assim, ao promover conversas sobre o impacto das palavras e ações, a escolas e torna um espaço de reflexão, contribuindo para uma cultura de respeito e inclusão.
De maneira geral, Adolescência é uma obra que oferece um olhar valioso sobre uma fase que, apesar dos desafios, é repleta de oportunidades para crescimento pessoal e formação de conexões significativas. A série pode servir como um espelho para muitos jovens, ajudando-os a entender melhor suas próprias emoções e experiências.
Em suma, a série serve como um alerta sobre os desafios da adolescência na era digital, enquanto a restrição do uso de celulares pode ser um passo positivo na construção de um ambiente escolar mais saudável e acolhedor.
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Para saber mais
Criatividade
O professor de história Luan Ribeiro, do colégio Pensi, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, vem compartilhando alguns episódios no X, o antigo Twitter. No oitavo dia sem celular, ele conta que os alunos levaram um pandeiro e uma miniatura do Coliseu para a aula. A postagem viralizou e tem mais 100 mil curtidas. Outra publicação diz que um aluno usou um binóculo para assistir à aula. Para Luan, os jovens estão "mais com a aula, testando mais suas capacidades e imaginando melhor". O professor tem visto estudantes, que até o ano passado eram mais introspectivos, buscando novos contatos, amizades e trocas. "Ainda é cedo para tirar conclusões, mas, vendo como as coisas têm se encaminhado, acredito que a vida escolar analógica vai possibilitar mais leitura, mais profundidade, menos apatia e melhor aproveitamento escolar", completa. Ele aponta, no entanto, que os alunos estão mais agitados e atribui isso ao pouco tempo da nova fase.