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Conheça a professora Ana Paula Bernardes: carreira digna de tapete vermelho

Professora da rede pública deixou a paixão pelas artes e pela literatura guiar o caminho da carreira profissional e abraçou o voluntariado para potencializar o alcance dos livros como elementos de transformação social

Mariana Niederauer
postado em 30/10/2022 06:00 / atualizado em 30/10/2022 06:00
Paixão pelas artes e pelos livros guiou a carreira da professora  Ana Paula Bernardes, que descobriu na mediação de leitura uma forma de transpor as paredes da sala de aula e expandir as possibilidades de aprendizagem de crianças e jovens. -  (crédito: Carlos Vieira/CB/D.A Press)
Paixão pelas artes e pelos livros guiou a carreira da professora Ana Paula Bernardes, que descobriu na mediação de leitura uma forma de transpor as paredes da sala de aula e expandir as possibilidades de aprendizagem de crianças e jovens. - (crédito: Carlos Vieira/CB/D.A Press)

Abrir um livro é como estender um tapete vermelho. Apresentar uma história a uma criança, também. E isso Ana Paula Bernardes, 52 anos, aprendeu cedo. Professora, inspirada por irmãos que marcaram o magistério no Distrito Federal, ela descobriu nas artes uma paixão e na mediação de leitura uma vocação que trouxe outro significado ao gesto de ensinar, ultrapassando a barreira da sala de aula.

O pai, Paulo César Bernardes, foi quem despertou nela inquietações que levaram ao encantamento pelos livros. Quando conheceu a mãe dela, Divina Cecília Alves Bernardes, era viúvo e tinha quatro filhos. Algumas das histórias mais impressionantes do patriarca datam das décadas de 1950 e 1960, passadas em cidadezinhas do interior de Minas Gerais.

"Ele tinha um cinema e meus irmãos contam histórias maravilhosas, deles saírem na cidade convocando para assistir ao filme", relata Ana Paula. "E o meu pai era o censor dos filmes. Todos eram Censura Livre: ele assistia primeiro, recortava o que achava que não dava, e assim passava para todo mundo", diverte-se. Criado e nascido em fazenda, sempre trabalhou com a terra. Apesar de não ter completado a educação básica, era muito inteligente e provocador.

 Ana Paula Bernardes no Roedores de Livros: "Biblioteca deveria ser o coração da escola"
Ana Paula Bernardes no Roedores de Livros: "Biblioteca deveria ser o coração da escola" (foto: Carlos Vieira/CB/D.A.Press)

"Meu pai era um grande contador de histórias, como todo bom mineiro, né? Ooo povo que gosta de contar história! Eu me lembro de escutar umas histórias de extraterrestres e sobre coisas muito mirabolantes", detalha a professora. Tudo isso em rodas de conversa entre os homens. As crianças, conta ela, ficavam escondidas na beirada da porta, acompanhando.

A alma criativa e inquieta levou Seu Paulo César a rodar por diversas cidades. Ana Paula nasceu em Goiânia. Em seguida, veio Andréa, brasiliense, e o caçula, Paulinho, nascido na capital goiana também. Dias depois da chegada do mais novo, a mãe dos três morre por complicações do parto e o patriarca fica viúvo mais uma vez. É quando decide voltar ao interior de Minas e manter os filhos unidos. Foi aos 7 anos de idade que Ana fincou raízes em Brasília — e no Guará, região onde mora até hoje e onde cursou toda a educação básica na rede pública.

"Eu me lembro perfeitamente: na 4ª série, eu tinha uma professora na biblioteca que fazia um ranking de quem lia mais, e eu estava sempre no alto. Mas eu também sempre fui muito tímida. As pessoas não acreditam. Todo mundo fala: como é?", recorda-se, aos risos. "Eu era uma menina criada na roça, que veio para a cidade. Então fui sempre muito quieta, e a biblioteca foi um lugar que me acolheu."

Tapete vermelho é tradição nas leituras do projeto voluntário fundado pela professora, em Ceilândia
Tapete vermelho é tradição nas leituras do projeto voluntário fundado pela professora, em Ceilândia (foto: Fotos: Arquivo pessoal)

A habilidade com artes emanava desde a infância. Ana Paula desenhava bonecas no papel e, depois, o guarda-roupa todo para vesti-las. Os cartazes da escola também ficavam sob sua responsabilidade. A irmã mais velha, Joana, também professora, cantou a pedra logo cedo: ela devia cursar artes. Antes, porém, ingressou em ciências biológicas no UniCeub e chegou a ser selecionada para atuar no laboratório de citologia da Faculdade de Saúde da Universidade de Brasília (UnB). Lá atuou como servidora. "Eu venho de uma família de professores. Os meus irmãos mais velhos são professores. Então ela (Joana) que me deu essa dica: 'Você tem que fazer outra coisa. Biologia não está dando certo'", relembra.

Maternidade e trabalho

A decisão de deixar o curso também teve como reflexo momentos delicados na vida pessoal. Aos 16 anos, Ana Paula perdeu o pai e descobriu a gravidez da primeira filha. Mãe solo, tinha uma pequena rede de apoio e precisava levar a pequena Ana Cecília de um lado a outro da cidade. "Isso foi virando uma tragédia na minha vida, porque eu estava na UnB e não conseguia fazer as outras coisas. Aí pedi exoneração e fui trabalhar como secretária numa empresa, já que também não podia parar de trabalhar."

Dos primeiros empregos, ela lembra que fez de tudo um pouco, e que cada colocação profissional representou um aprendizado importante. Trabalhou para uma grande empresa de informática na capital; como estagiária do Banco Central ; e vendedora em banca de revista. "Fui uma das primeiras mulheres a trabalhar com licitação de software em Brasília. Era aquela mesa cheia de homens e eu a única mulher", relata.

Na UKa Yawumbwé Bayacú, comunidade Nova Esperança, em Manaus. Ela ajudou na criação de uma casa do conhecimento
Na UKa Yawumbwé Bayacú, comunidade Nova Esperança, em Manaus. Ela ajudou na criação de uma casa do conhecimento (foto: Arquivo pessoal)

Ainda por insistência da irmã mais velha, decidiu fazer o vestibular para uma das primeiras turmas do curso de artes da UnB, à noite, e passou. Foi primeiro passo da construção da trajetória no magistério. Em 1999, último ano da graduação, foi aprovada no concurso da Secretaria de Educação do DF para professor efetivo. Bem colocada, na quarta posição do certame, foi chamada logo na primeira leva de aprovados e pôde escolher o Guará para lecionar. A escola era o Centro Educacional 01.

A vaga que ela ocupava à época era originalmente de uma professora que havia saído de licença-maternidade. Quando terminou o período de afastamento da profissional, um remanejamento para outra escola seria necessário, mas Ana Paula era agora mãe de mais dois filhos. O do meio, Pedro, tinha 2 anos, e a caçula, Júlia, apenas 1. A Coordenação Regional de Ensino decidiu mantê-la no Guará, mas na oficina pedagógica, uma mudança que marcaria sua vida para sempre.

Lá, ela auxiliava na confecção de material lúdico e ministrava pequenos cursos. Um deles, no início dos anos 2000, chamava-se A Arte de Contar Histórias. Os ensinamentos dali, Ana Paula repassou por anos na rede pública, mostrando a outros professores como usar a leitura em sala de aula. Aliado a isso e à participação em feiras do livro, renasce um interesse pela literatura e começam a se moldar nela uma nova visão de mundo e das próprias potencialidades.

Encantamento

Os irmãos, da esquerda para a direita: Maria Elisa, Maria Joana, Carlos, Luiz; embaixo: Ana Paula, Andréa e Paulo César
Os irmãos, da esquerda para a direita: Maria Elisa, Maria Joana, Carlos, Luiz; embaixo: Ana Paula, Andréa e Paulo César (foto: Arquivo pessoal)

Nomes da literatura infantil como Jô de Oliveira, Mariana Massarani, Roger Mello e Graça Lima passaram a integrar seu repertório e muitos viraram amigos pessoais. "No meio do caminho, indo muito a feiras e a outros eventos literários, eu descobri a mediação de leitura. É diferente da contação de história, e eu percebi que queria mais a mediação. A contação de histórias exige uma coisa mais corporal, uma expressão cênica, que eu não tinha. Então, não me sentia à vontade", detalha.

Ao lado de amigos como Célio Calisto e Juliana Maria e do escritor Tino Freitas, com quem foi casada, entre outros, começou uma nova empreitada: o Roedores de Livros. O início do projeto, na biblioteca do Açougue Cultural T-Bone, na Asa Norte, foi apenas o primeiro passo de um universo que se abriu.

As leituras sobre o tapete vermelho — tradição do projeto e que até viraram livro homônimo, escrito por ela e por Tino, com ilustrações de Sandra Jávera — se tornaram alento e inspiração de muitas crianças ao longo de 16 anos, e contando… Hoje, quem toca o projeto ao lado dela é o atual companheiro, Adriano Afonso, diretor de Administração e Finanças, e o amigo Célio, presidente do Roedores.

Ana Paula Bernardes, professora e fundadora do projeto Roedores de Livros. Coluna Nossos mestres. Com os filhos, o genro e o neto
Ana Paula Bernardes, professora e fundadora do projeto Roedores de Livros. Coluna Nossos mestres. Com os filhos, o genro e o neto (foto: Arquivo pessoal)

Estudiosa, ao longo de mais de uma década se dedicou, com o apoio de todos os parceiros que compõem e compuseram a história do projeto, a entender a mediação de leitura e aperfeiçoar a prática na "bibliotoca" do Roedores, no Shopping Popular de Ceilândia, local que abriga o acervo infantil e juvenil mais completo da cidade, tudo disponível gratuitamente. Neste ano, faz parte da comissão julgadora da categoria Fomento à Leitura do 64º Prêmio Jabuti.

"Hoje, eu posso dizer que temos uma metodologia construída, e a partir de todo o aprendizado ao longo desse caminho. Como a minha experiência no Instituto C&A, assessorando os projetos Prazer em Ler e Voluntariado C&A, por exemplo. Com todas essas vivências, a gente consegue ver a importância da educação no seu sentido mais amplo e como as crianças se beneficiam dessa poderosa ferramenta que é a leitura."

O ritual é completo e acolhedor, como ela e Tino contam em um trecho de Tapete vermelho (Ed. do Brasil): "Por isso, toda manhã, ela estende seu tapete vermelho. Os visitantes chegam aos poucos. Vão se aninhando. Antes de pisar no tapete, um último e novo ritual: deixam seus calçados ao lado. Descalços, sentem o calor dos fios rubros. Descalços, são ainda mais parecidos".

Transformação

Aos 4 anos, num dos poucos registros da infância passada em diferentes cidades
Aos 4 anos, num dos poucos registros da infância passada em diferentes cidades (foto: Arquivo pessoal)

À luz de toda essa experiência, ela faz uma análise da educação brasileira. "A sociedade ainda não consegue colocar a biblioteca como centro da escola. A biblioteca deveria ser o coração da escola", avalia. "Esse espaço deve ser vivo e possibilitar todo e qualquer tipo de questionamentos e diálogos. Precisa ter a tecnologia, outras linguagens, novas possibilidades", observa Ana Paula, que levou ao Roedores este ano escritores como José Carlos Lollo e Blandina Franco — referência na literatura infantil; e Kiusam de Oliveira — expoente da literatura negra de encantamento infantil e juvenil.

Na Secretaria de Educação, a professora descobriu que seu lugar era ocupando outros espaços educativos. "Não acho que meu lugar seja em sala de aula, não me encontrei em sala de aula, por vários motivos", destaca. "Mas eu posso dar a minha contribuição na educação em outros lugares." Um deles foi o Memorial dos Povos Indígenas. Durante dois anos, esteve à frente do projeto Territórios Culturais naquele espaço, e dava aulas aos estudantes da rede pública sobre a cultura indígena. A experiência de 11 anos de trabalho no Instituto C&A, que inclui a criação de uma "casa do conhecimento" em uma comunidade indígena de Manaus, contribuiu.

Hoje, Ana Paula é gerente de Educação Infantil e Fundamental em Tempo Integral da secretaria. O DF caminha para atender a Meta 6 do Plano Distrital da Educação (PDE) - oferecer educação em tempo integral em, no mínimo, 60% das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 33% dos estudantes da educação básica.

Com o neto, Isaac, 5, uma das inspirações para o trabalho com educação em tempo integral
Com o neto, Isaac, 5, uma das inspirações para o trabalho com educação em tempo integral (foto: Arquivo pessoal)

Curtir o neto Isaac, 5 anos, filho de Ana Cecília e Deividi, é uma das coisas que mais lhe dá prazer e inspira na hora de pensar a educação em tempo integral, focada na formação plena dos estudantes. O projeto Concerto didático, que leva estudantes de escolas públicas para assistir à Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional é um dos exemplos. E ela sabe que o potencial da educação não para por aí.

"Eu ganhei o mundo por meio do trabalho. Eu tive a sorte de trabalhar em lugares fantásticos. E ganhei o mundo por meio da educação. Tive a sorte de ter professores fantásticos", celebra.

Ana Paula conta que se identifica com um provérbio usado por povos indígenas e africanos: "Não se educa uma criança sozinho, é preciso de toda uma aldeia". E isso resume a própria trajetória da professora, da infância aos dias de hoje. "Eu sei que fui formada por toda uma comunidade. Pelos meus irmãos, que eram a minha rede mais próxima, mas por todos os outros. Tive professores muito importantes na minha vida, pessoas muito importantes, e eu acho que não seria ninguém sem isso."

 


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