Yandra Martins*
postado em 14/12/2025 06:00 / atualizado em 14/12/2025 06:00
. - (crédito: Fotos: Divulgação/UFNT)
Aos 70 anos, Dona Maria de Fátima Abade Barbosa deu o último passo para conquistar o tão sonhado diploma universitário. Mulher negra, camponesa e filha de quebradeira de coco babaçu, no interior do Tocantins, precisou superar muitos obstáculos para realizar seus maiores sonhos. Na apresentação do trabalho de conclusão de curso (TCC) de licenciatura em educação do campo — artes, da Universidade Federal do Tocantins (UFNT) —, Dona Maria emocionou a todos que estavam presentes e impactou o público da internet com a maneira como contou a própria trajetória.
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Com um texto e uma apresentação que relatam os anos em que a formanda se afastou dos estudos, o trabalho intitulado Nunca é tarde para aprender: a história de vida de uma mulher preta que foi excluída do processo educacional de ensino foi apresentado, em 13 de novembro, no câmpus de Tocantinópolis, norte de Tocantins. Acabou aprovado pela banca avaliadora.
Conheça Dona Maria
A vida de Dona Maria não foi fácil. Nascida a cerca de 15km de Tocantinópolis, cresceu em um ambiente de muita simplicidade. Aos 7 anos, iniciou os estudos. Depois de uma semana na escola, saiu e levou mais de três décadas para retornar. Para a mãe, alegou que havia aprendido o necessário e, por isso, não era preciso frequentar a instituição. Segundo ela, essa foi a forma que encontrou de ajudar Laurentina Barbosa a garantir o sustento de ambas.
É dessa maneira que Dona Maria lembra da mãe: uma grande guerreira, que criou-a sozinha, com muito esforço vindo do ofício de quebrar o coco babaçu. Lau- rentina era capaz de erguer muros e produzir móveis com as habilidades e os materiais acessíveis no campo.
Após anos como quebradeiras de coco babaçu, com o passar do tempo, fazendeiros passaram a se apropriar da plantação da região. Isso fez com que elas perdessem o principal sustento. Dessa forma, as antigas quebradeiras precisaram buscar alternativas de sobrevivência.
A partir daí, encontraram uma fazenda para plantar e colher arroz, perto da cidade onde viviam. O sistema funcionava por meio de arrendamento — o fazendeiro autorizava o uso da terra para plantação e colheita, mas duas sacas lhe eram entregues, enquanto Dona Maria e Laurentina podiam ficar apenas com uma. Não foi uma fase fácil na vida de Dona Maria. Em busca de mais oportunidades, ela mudou-se para Brasília.
Quando Dona Maria vivenciou a perda da mulher que, segundo ela, era seu mundo, foi o maior sofrimento que poderia imaginar. Depois de três décadas em Brasília, trabalhando como empregada doméstica, garante que esse período tornou-se “a maior tristeza da vida”. O choque da cidade grande, estar longe da mulher que dedicou a vida a seu cuidado e do lugar onde havia crescido são o que, para ela, justificam o sentimento.
Sobre quem faz parte
Muitas são as pessoas que marcaram a trajetória de Dona Maria. O caminho da educação foi trilhado graças ao apoio da mãe, na infância, do filho adotivo e das professoras. Em Goiânia, uma professora simpática foi a responsável para que Dona Maria retomasse os estudos e cursasse o EJA (Educação de Jovens e Adultos), parte primordial de quem se tornou.
Iara Rodrigues da Silva, 33 anos, egressa do mesmo curso que Dona Maria, integra o grupo de pessoas que mudou a vida da ex-quebradeira de coco babaçu. Ao Correio, ela conta que, na época em que se formou, em 2018, conhecia parte da história de Dona Maria. Ao retornar como docente e ver que dona Maria ainda estava na universidade e precisava de uma orientação no TCC, não pensou duas vezes e se dispôs a ajudá-la.
Para Iara, orientar esse trabalho significou aprender muito com a história de vida da mulher: “Diante dela não sei nada”, declara e enfatiza a importância dessa experiência para mostrar o tipo de educadora que pretende ser. Segundo ela, cada pedaço do texto e da apresentação foi emocionante. Iara fala a respeito do quão significativo foi orientar esse trabalho. Cada relato e capítulo escrito lhe remetiam a mulheres da própria família, que, assim como Dona Maria, foram privadas dos estudos.
Lindiane de Santana, professora que atua na área de música no curso em que a ex-aluna se formou, e a colega Mara Pereira da Silva, 43, fizeram parte da banca examinadora. Elas reconheceram a importância do trabalho de Dona Maria, por dar voz a pessoas que têm experiências, tradições, modos de viver e histórias similares, mas não encontram esses relatos documentados. Para Mara, a história de Dona Maria combate o etarismo, o machismo e outras formas de preconceito, ao mostrar a força de uma mulher idosa, negra e bata lhadora em busca de seus sonhos.
Por sua vez, Lindiane conta que sofreu um grande impacto ao ler o texto de Dona Maria e se deparar com os relatos da vida pessoal dela, na noite anterior à avaliação do TCC. Segundo ela, Dona Maria possui uma biblioteca “viva no corpo” e seu trabalho supera as normas acadêmicas. Para Lindiane, o modo como apresentou a própria trajetória alterou a dinâmica da universidade e mostrou que a ex-aluna é uma “força do vento que faz acontecer”
A professora, ao falar da formanda, faz referência à música Maria, Maria, uma composição de Milton Nascimento e Fernando Brant. Segundo ela, ao conhecer a história de Dona Maria, a impressão que ficou é de que a letra foi escrita para ela e sobre ela. O trecho que diz: Maria, Maria é um dom, uma certa magia, uma força que nos alerta, para Lindiane descreve a ex-aluna com perfeição. Ela faz referência ainda ao termo “escrevivência”, conceituado por Conceição Evaristo como a ação que une a escrita e a vivência para resgatar e recontar histórias marginalizadas.
Sonhos concretizados
Dona Maria garante que estar na universidade incentivou-a a confiar no próprio potencial e nos sonhos. Ela conta a aventura vivenciada em fevereiro deste ano, em seu aniversário de 70 anos, ao viajar cerca de 2,4 mil quilômetros de sua cidade até o Rio de Janeiro. Tudo para conhecer a Sapucaí e assistir à escola de samba do coração: Portela.
Ela relata que o momento foi muito especial, pois lhe permitiu a experiência de estar no camarote, graças a sua resiliência. Após juntar R$ 600 para a jornada, contou com a bondade de muitas pessoas ao longo do percurso, até chegar ao lugar de desejo e, finalmente, obter essa conquista.
Dona Maria pretende deixar de lição a todos que ouvem sua história a importância de sonhar e de correr atrás da realização desses sonhos. Ainda criança, encantou- -se pelo som e pela figura do saxofone. Mas, no contexto em que vivia, jamais imaginou a possiilidade de ter e tocar o instrumento.
Quando entrou na Universidade Federal do Norte do Tocantins e viu-se realizando um sonho antigo — estudar —, percebeu que não havia limites. Apesar das dificuldades e das insistentes tentativas de terceiros para diminuir seu potencial, Dona Maria não se deixou abalar.
O sonho de comprar o saxofone foi conquistado com muito esforço e dedicação, assim como tudo em sua vida. Dona Maria aliou os rendimentos ao valor que passou a receber catando latinhas e papelão para comprar o instrumento. No Brasil, na época em que passou a pesquisar, o preço era surreal — R$ 6 mil. Então, com mais pesquisas descobriu, que no Paraguai, o valor caía para mais da metade — R$ 2,5 mil.
Foi então que ela passou a juntar o dinheiro, na esperança de, um dia, ter em mãos o instrumento que, no seu entender, imita o que há de mais belo no ser humano: a fala. Agora, o verdadeiro sonho de Dona Maria não é alcançar fama ou dinheiro com o instrumento, mas usá-lo para levar alento a hospitais, abrigos e até prisões.
Estagiária sob a supervisão de Ana Sá