HAITI

"População haitiana está em choque", afirma morador após morte de presidente

Comando armado invade residência oficial, mata Jovenel Moïse e fere gravemente a primeira-dama, transferida para hospital de Miami. Comunidade internacional reage com firmeza e exige justiça rápida. Autoridades fecham fronteiras e decretam lei marcial

Rodrigo Craveiro
postado em 08/07/2021 06:00
 (crédito:  Hector Retamal/AFP - 13/3/17)
(crédito: Hector Retamal/AFP - 13/3/17)

Rua Peregrin 5, bairro de Pétion-Ville, na periferia de Porto Príncipe. Por volta de 1h de ontem (2h em Brasília), um comando armado invadiu a residência oficial da Presidência do Haiti. Em vídeos gravados por moradores da região, um dos homens aparece gritando, em inglês, com um megafone: “Operação do DEA (agência antidrogas dos Estados Unidos). Todo mundo deitado”. O presidente haitiano, Jovenel Moïse, 53 anos, e a primeira-dama, Martine Moïse, foram surpreendidos pelos supostos mercenários. Jovenel morreu na hora; Martine ficou ferida, com uma bala fragmentada dentro do corpo, e foi transferida para Miami. O magnicídio é um capítulo a mais em um país sacudido pela instabilidade e pela miséria. No início da noite, as autoridades anunciaram a prisão de suspeitos pelo crime.

O premiê interino, Claude Joseph, decretou “estado de exceção”, impôs a lei marcial, ordenou o fechamento das fronteiras e pediu aos 11,1 milhões de haitianos que mantenham a calma. O Aeroporto Internacional Toussaint Louverture, em Porto Príncipe, teve as operações interrompidas. “O presidente foi assassinado em sua casa por estrangeiros que falavam inglês e espanhol”, declarou Joseph. “Esta morte não ficará impune”, prometeu. Jovenel é o primeiro líder das Américas assassinado desde John F. Kennedy (1963).

O embaixador do Haiti nos EUA, Bocchit Edmond, assegurou a jornalistas que os assassinos são “profissionais” que se passaram por agentes americanos. “Foi um ataque bem planejado. Temos um vídeo e acreditamos que eram mercenários”, anunciou. Um vídeo divulgado nas redes sociais mostra homens fortemente armados diante da residência de Jovenel. Pouco depois, escuta-se uma sequência de tiros. Em várias ocasiões, Jovenel disse em entrevistas que era alvo de um complô para matá-lo. Ele governava o país mais pobre das Américas por decreto, depois do adiamento das eleições legislativas de 2018.

A comunidade internacional reagiu com indignação ao atentado. “Condeno, nos mais fortes termos, o assassinato do presidente Jovenel Moïse. Os autores deste crime devem ser trazidos à Justiça. A ONU continuará a apoiar o governo e o povo haitiano”, afirmou António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, que mantiveram no país a Minustah, missão de estabilização comandada pelo Brasil, entre 2004 e 2019.

O general brasileiro Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e primeiro comandante da Minustah, em 2004, disse à Rádio Bandeirantes que a “eterna turbulência praticamente é o estado normal da política haitiana”.

O Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos (OEA) classificou o ataque como “vil” e “atroz” e fez um urgente chamado à uma “rápida investigação internacional” para levar os autores ante a Justiça. Os Estados Unidos pediram ao Haiti que avance com as eleições marcadas para o fim deste ano, por entenderem que a votação pode facilitar uma transferência pacífica de poder.

Morador de Porto Príncipe, o doutor em ciências sociais e professor da Universidade do Estado do Haiti Vogly Nahum Pongnon afirmou ao Correio que a população haitiana está desamparada e em choque. “As avenidas da capital estão vazias. Ninguém imaginava a trágica morte do presidente. Fato similar ocorreu somente três vezes em toda a história do país, explicou o estudioso, que viveu em Brasília entre 2011 e 2017, quando foi aluno da UnB. “A morte de Jovenel ocorreu a sete meses do fim de seu mandato. Claude Joseph decretou luto de 15 dias e ordenou às Forças Armadas que cacem os criminosos. “Parece que não houve resistência dos seguranças presidenciais”, disse.

O advogado e ativista de direitos humanos Antonal Mortime, também morador da capital haitiana, admitiu à reportagem que a situação no país é “muito precária. “Não se sabe quem cometeu o atentado. Minha esposa é presidente do Colégio Eleitoral, responsável por organizar as eleições de 26 de agosto. Ela também sofreu ameaças”, relatou. “Tememos pela segurança de nossa família.”

Monocrático

Professora de relações internacionais da ESPM-SP, Denilde Holzhacker explicou ao Correio que o perfil controverso de Jovenel agravou a instabilidade no Haiti. Ela lembra que ele foi eleito dentro da lógica de renovação e de reconstrução nacional, além de transmitir a ideia de que daria novo rumo à política e à sociedade. “Mas o presidente não conseguiu responder, em termos de ações. Jovenel Moïse demonstrou um posicionamento de atuação monocrática, com viés de perseguição aos opositores”, comentou. Segundo ela, o presidente ampliou as mazelas sociais e os problemas de segurança, focados principalmente nas disputas entre gangues. “O assassinato de Jovenel intensifica ainda mais a instabilidade e dificulta uma pacificação do Haiti. As consequências são imprevisíveis em termos de grau de violência na sociedade”, observou.

Ainda segundo Denilde, os desafios dos haitianos serão controlar os grupos violentos e impulsionar a transição de poder. “Haverá muitas pressões internacionais para que o Haiti realize um processo legítimo de mudança de governo, capaz de abarcar todas as forças políticas. A questão imediata é garantir a normalidade e a ordem, para, depois, viabilizar a transição e construir um consenso politico”, avaliou. A estudiosa avalia que a saída, em 2019, das forças da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), comandada pelo Brasil, ampliou a instabilidade ante a incapacidade de reconstruir o país e apresentar resultados concretos.

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  • Policiais e peritos forenses buscam evidências do lado de fora da residência presidencial, no bairro de Pétion-Ville: crime misterioso
    Policiais e peritos forenses buscam evidências do lado de fora da residência presidencial, no bairro de Pétion-Ville: crime misterioso Foto: Hector Retamal/AFP - 13/3/17
  • Câmeras de segurança mostram avanço dos assassinos, pouco antes da invasão ao imóvel
    Câmeras de segurança mostram avanço dos assassinos, pouco antes da invasão ao imóvel Foto: Hector Retamal/AFP - 13/3/17

Brasil pede respeito pela democracia

Às 17h23 de ontem, o governo brasileiro se manifestou sobre o assassinato do presidente haitiano. Em nota, o Ministério das Relações Exteriores expressou suas condolências e se solidarizou com as autoridades e com o povo do Haiti. “O Brasil espera que os responsáveis sejam identificados e levados à Justiça”, diz o texto. “Ao condenar veementemente o atentado, o governo brasileiro reafirma a importância do compromisso das forças políticas haitianas com a democracia e com os direitos humanos no Haiti e manifesta seu apoio às autoridades do país. Reitera, ademais, seu repúdio a todos os atos que possam comprometer o Estado de direito e a ordem democrática e conclama os haitianos ao diálogo e ao entendimento, com vistas a criar as condições para a superação da atual crise, no marco da constituição ora vigente naquele país.”

Eu acho...

 (crédito: Arquivo Pessoal)
crédito: Arquivo Pessoal

“O assassinato de Jovenel Moïse vai impactar a política nacional e mudar as posturas dos atores da política haitiana. A alma da população está ferida. Tudo pode acontecer. Existe a possibilidade de um cenário de confrontação. É preciso uma intervenção pesada dos EUA para se obter um acordo nacional.”
Vogly Nahum Pongnon, doutor em ciências sociais e professor da Universidade do Estado do Haiti (em Porto Príncipe)

“O clima aqui em Porto Príncipe é de inquietação e de suspense. As pessoas estão muito nervosas. A comunicação do governo sobre a situação é insatisfatória. Com o estado de sítio, algumas liberdades civis estão sob restrição, como os direitos humanos e a possibilidade de realizar viagens, entre outras coisas.”
Antonal Mortime, advogado, jornalista e ativista de direitos humanos em Porto Príncipe

 

Personagem da notícia

Um líder controverso

Jovenel Moïse morreu aos 53 anos, depois de apostar em uma carreira empresarial de sucesso que impulsionou-lhe à cadeira no Palácio Nacional. Sob amplas críticas, viu seu mandato erodir. A estreia no cenário político ocorreu em 2015. A ascensão à Presidência ocorreu poucos depois, mediante um processo eleitoral acidentado e longo. A decisão de suspender o Parlamento e governar por decreto ampliou sua impopularidade.

De origem modesta, era filho de pai mecânico e agricultor e de mãe costureira e comerciante. Nascido em Trou du Nord (nordeste), em 26 de junho de 1968, mudou-se em 1974 com a família para a capítal, onde estudou na Faculdade de Ciências da Educação da Universidade Haitiana Quisqueya. Deixou dois filhos.

Depois de se casar com Martine Etienne Joseph, 1996, retornou a Trou du Nord com o sonho de transformar o Haiti em uma nação “essencialmente agrícola”. Com fundos de capital privado, criou uma empresa de autopeças, ao mesmo tempo que instalava uma plantação de banana orgânica de 10 hectares. O cultivo se expandiu até quase 1 mil hectares, rendendo-lhe o apelido de “Nèg Bannan nan” (“O homem da banana”, em crioulo).

Ante a ausência de água potável, abriu uma unidade de distribuição no nordeste e no noroeste do país. Outra aposta foi a eletrificação regional: criou uma empresa neste setor. Em 2012, inaugurou a primeira zona franca agrícola do Haiti e fundou a companhia Agritrans, depois de obter empréstimo participativo de US$ 6 milhões do governo daquele que seria o antecessor, Michel Martelly.

A entrada na política é atribuída a Martelli, que, impedido de concorrer à reeleição, escolheu Jovenel, em 2015, para representar o seu partido, o Tet Kale (PHTK), manobra que assegurou a sua sucessão. Eleito, Jovenel prometeu pôr fim à corrupção. Em pouco tempo, alguns de seus colaboradores foram acusados de desvio de verbas públicas.

Ano após ano, as investigações parlamentares, de ONGs ou do Tribunal de Contas, confirmaram que a corrupção reina no Haiti. Moïse teve dificuldades em explicar o destino do dinheiro obtido com o programa Petrocaribe, lançado pelo falecido presidente venezuelano Hugo Chávez para permitir aos países caribenhos comprarem petróleo barato.

Jovenel nomeou sete premiês em quatro anos e falhou com a reforma constitucional. Apesar de a oposição e a sociedade civil alegarem que o mandato terminou em 7 de fevereiro passado, ele estava determinado a ficar no poder até 7 de fevereiro de 2022. Tudo por ter sido eleito em votação anulada por fraude e reeleito um ano depois.

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