AFEGANISTÃO

Focos de revolta são registrados em cidades do Afeganistão

Três dias após Talibã tomar o poder, manifestantes saem às ruas em duas cidades e trocam bandeira do grupo pela do país. Extremistas reagem e matam três em Jalalabad. Presidente negocia retorno a Cabul, mas EUA dizem que ele não é "importante"

Rodrigo Craveiro
postado em 19/08/2021 06:00
 (crédito: Wakil Kohsar/AFP)
(crédito: Wakil Kohsar/AFP)

Na véspera do Dia da Independência do Afeganistão, o estudante de medicina Muhammad Javed Khan, 23 anos, saiu às ruas de Jalalabad para celebrar a data, por volta das 9h45 (2h15 em Brasília). “Cantávamos o hino do nosso país, quando os talibãs atiraram e nos golpearam. Perdemos dois de nossos amigos. Eu estou muito triste”, relatou ao Correio o morador da cidade de 200 mil habitantes situada 150km a leste de Cabul.

Jovens removeram a bandeira do grupo fundamentalista islâmico Talibã e a trocaram pelo estandarte nacional. Os talibãs mataram ao menos três manifestantes e feriram 12. “Queremos a bandeira de três cores (preta, vermelha e verde)”, afirmou Khan.

Um vídeo que mostra o choro de dois jornalistas espancados pelos extremistas viralizou na internet. Em Khost (sul), afegãos também colocaram a bandeira do Afeganistão no alto de um viaduto. Os milicianos atiraram.

Exilado com a família nos Emirados Árabes Unidos, o presidente afegão, Ashraf Ghani, discursou aos afegãos, disse que foi forçado pela equipe de segurança a fugir e anunciou que negocia o retorno ao país. “Por enquanto, estou nos Emirados para evitar o banho de sangue e o caos. Estou em negociações para voltar ao Afeganistão”, disse, em vídeo publicado na internet. O governo norte-americano, no entanto, declarou que Ghani “não é mais uma pessoa importante no Afeganistão”.

Em entrevista à emissora ABC News, o presidente Joe Biden disse que era impossível uma retirada dos EUA sem “alguma forma de caos”. O democrata garantiu que as tropas do Pentágono ficarão no Afeganistão depois de 31 de agosto — o prazo para a saída militar —, até que todos os norte-americanos sejam removidos do país.

Morador de Cabul, Ansarullah Haidari prendeu uma bandeira do Afeganistão sobre o telhado do prédio. “Estamos esperando o Talibã vir”, afirmou à reportagem. Ele não acredita que os incidentes em Jalalabad e em Khost apontem para o início de um levante nacional.

“Tudo em meu país entrou em colapso. O Talibã tem praticamente o controle absoluto. Não acho que os cidadãos estejam em condições de encampar uma revolução, mas é verdade que em algumas províncias se vê protestos”, admitiu. Questionado se teme os talibãs, ele responde: “Por causa de meu patriotismo, não, mas ameaças persistem.”

Confiança

Também em Cabul, o estudante de direito Aliahmad Ahmadi, 28, discorda de Ansarullah e afirmou ao Correio que acredita “100%” na possibilidade de uma revolta nacional contra o Talibã. “Eles não podem governar dessa forma. A confiança entre talibãs e a população nunca poderá ser formada. Os líderes do grupo não veem essa situação como algo favorável”, advertiu.

Ahmadi prevê que a revolta começará na província de Panjshir, no nordeste do Afeganistão. “A chamada Segunda Frente de Resistência está sendo formada, com um enorme contingente — formado pela Aliança do Norte e liderado por figuras como Ahmad Massoud, filho de Ahmad Shah Massoud. O vice-presidente, Amrullah Saleh, também está em Panjshir, a apenas três horas de Cabul. Em breve, eles assumirão o comando do país”, aposta. Um vídeo mostrando um comboio de carros e motocicletas conduzidos por combatentes da Aliança do Norte foi filmado em Panjshir e divulgado pelas redes sociais.

Na terça-feira, Zabihullah Mujahid, porta-voz do Talibã, havia assegurado que o grupo respeitaria os direitos humanos e a educação das mulheres, sob a estrutura da sharia (lei islâmica). A promessa durou menos de 24 horas. Além dos disparos contra manifestantes e do espancamento de jornalistas, talibãs foram vistos golpeando afegãos perto do aeroporto de Cabul. O mulá Haibatullah Akhundzada, líder do Talibã, determinou a libertação dos “prisioneiros políticos”, horas depois de Mujahid anunciar uma anistia geral.

Em Herat (noroeste), a terceira maior cidade do país, a 150km da fronteira com o Irã, o Talibã permitiu que meninas fossem à escola, vestidas com túnicas pretas e hijabs (véus) brancos — uma cena que provocou alívio misturado à cautela. Ontem, os Estados Unidos, o Reino Unido e a União Europeia emitiram comunicado conjunto no qual expressam “profunda preocupação com as mulheres e garotas” do Afeganistão e avisam que “monitorarão de perto” o futuro governo.

No campo político, Anas Haqqani, negociador do Talibã, se reuniu com Hamid Karzai e com Abdullah Abdullah, respectivamente ex-presidente e ex-vice. As conversas de Karzai e de Abdullah com a milícia fundamentalista no poder tiveram apoio de Ghani. “Não resta confiança aos políticos do meu país. O Talibã jamais será um ator confiável. Os afegãos enfrentam um estado de desespero total”, comentou Aliahmad Ahmadi.

O próximo governo terá dificuldades financeiras. Ajmal Ahmady, presidente do Banco Central Afegão (DAB), que também abandonou o país, alertou que o Talibã tem acesso a apenas 0,1% ou 0,2%¨das reservas monetárias do Afeganistão. O Fundo Monetário Internacional (FMI), por sua vez, anunciou a suspensão dos fundos para Cabul, ante a incerteza política.

» Abusos talibãs

Desespero no aeroporto
“Socorro! O Talibã está vindo! O Talibã está vindo!”, grita a jovem afegã, agarrada a um dos portões de acesso ao Aeroporto Internacional Hamid Karzai, em Cabul. A súplica, em vão, feita a um soldado dos EUA, foi em vão. Em outro vídeo, mulheres entoam um cântico: “Minha terra está cansada da perseguição”. O Departamento de Estado norte-americano acusou o Talibã de descumprir com a promessa de facilitar o acesso dos afegãos ao aeroporto. “Há relatos de que os talibãs (...) estão impedindo que afegãos que querem deixar o país cheguem ao aeroporto”, disse Wendy Sherman, subsecretário de Estado.

Jornalista foi impedida de trabalhar
Ao chegar para trabalhar na Televisão e Rádio Nacional do Afeganistão (RTA), ontem, a jornalista Shabnam Khan Dawran (foto) teve uma surpresa. “Eles (talibãs) me disseram que as coisas tinham mudado e que eu não tinha permissão para estar ali. Apesar de usar um hijab (véu islâmico) e de apresentar meu crachá funcional, eles me disseram: ‘O regime mudou. Vá para casa’”, contou, em vídeo publicado nas redes sociais. Na terça-feira, Zabihullah Mujahid, porta-voz do Talibã, assegurou que as mulheres afegãos teriam permissão para trabalhar.

Estátua de herói hazara destruída
Na madrugada de segunda-feira, talibãs explodiram a estátua do líder hazara Abdul Ali Mazari, na em Bamyan, no centro do país. Mazari foi o líder de uma milícia xiita que combateu os talibãs durante a guerra civil, na década de 1990. Na mesma província, os talibãs destruíram duas gigantescas imagens de Buda, de mais de 1.500 anos, consideradas patrimônios históricos da humanidade.

“A demolição da estátua de Mazari marca o início de uma divisão e de um ódio que marcará a revolta contra violência talibã”, afirmou ao Correio Aliahmad Ahmadi, 28 anos, estudante de direito nascido em Bamyan.

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação