AFEGANISTÃO

Biden é pressionado a adiar a retirada militar do Afeganistão

Reino Unido insiste que a Casa Branca prorrogue a saída das tropas estrangeiras do país, e Talibã adverte que adiamento representará "linha vermelha"

Rodrigo Craveiro
postado em 24/08/2021 06:00
 (crédito: Wakil Kohsar/AFP)
(crédito: Wakil Kohsar/AFP)

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, está preso em uma armadilha. De um lado, os países aliados pressionam a Casa Branca para que prorrogue a retirada militar do Afeganistão, prevista para daqui a exatamente uma semana.

De outro, a milícia fundamentalista islâmica Talibã, que retornou ao poder no último dia 15, determinou que a data de 31 de agosto é uma “linha vermelha” e ameaçou com “consequências” caso o prazo não seja respeitado. No meio, milhares de norte-americanos e estrangeiros à espera, no Aeroporto Internacional Hamid Karzai (em Cabul), de um resgate aéreo cujo resultado é dado como incerto pelo presidente democrata.

Biden tenta retomar o controle da narrativa sobre o Afeganistão, ao insistir que a guerra tinha que terminar e que, para tanto, tomou uma atitude corajosa. O Pentágono informou que cerca de 16 mil pessoas foram resgatadas do aeroporto apenas nas últimas 24 horas, elevando o total, desde julho, a 42 mil, incluídas as 37 mil desde 14 de agosto, véspera da tomada de Cabul pelos insurgentes.

O Reino Unido admitiu o desejo de que a missão militar no país asiático se estenda até setembro, “caso as circunstâncias permitam”. Biden e o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, conversaram por telefone sobre o assunto. “Eles debateram os esforços em andamento, por parte de nosso pessoal diplomático e militar, para retirar seus cidadãos, equipe local e outros afegãos vulneráveis. Também discutiram planos para um encontro virtual entre líderes do G7 amanhã (hoje), ao sublinharem a importância de coordenação próxima com aliados e parceiros para forjarem uma abordagem comum para a política sobre o Afeganistão”, afirmou a Casa Branca, por meio de um comunicado.

Johnson sublinhou que o Talibã será “julgado por suas ações, não por suas palavras”, ao sair em defesa da missão no Afeganistão. “Junto com nossos parceiros e aliados, continuaremos a usar todos os recursos humanitários e diplomáticos para salvaguardar os direitos humanos e proteger as conquistas das últimas duas décadas (no país)”, declarou.

Desconfiança

Suhail Shaheen, membro da delegação do Talibã em Doha, disse que a “ampliação da ocupação criará desconfiança entre nós”. “Se eles tiverem a intenção em continuar a ocupação, isso provocará uma reação”, advertiu, sem especificar o tipo de resposta. Mais moderado, Mohammed Naeem, porta-voz do escritório político do Talibã no Catar, disse ao Correio que o grupo não aceitará mais interferências externas (leia entrevista).

Coordenador do curso de relações internacionais do Centro Universitário Iesb, Marco Antônio de Meneses Silva afirmou ao Correio que os corpos diplomático e militar do governo Biden fracassaram ao manterem o prazo de entrega do poder ao Talibã. “Os EUA também falharam porque passaram vários anos envolvidos na tarefa de tentar dotar o Afeganistão de um aparato estatal mínimo, que pudesse fazer com que o Estado afegão funcionasse”, comentou.

Silva lembrou que, ao visitar Cabul, em 2020, Mike Pompeo — chefe da diplomacia do governo de Donald Trump — dialogou com o Talibã, em vez de priorizar o regime de Ashraf Ghani. “É uma situação bem complicada, pois essas pessoas foram absolutamente traídas, como se o governo de Ghani não existisse”, disse.

O professor do Iesb reconhece que Biden tem pouco espaço para manobras. “Ele adota a lógica de que não vale masis a pena comprometer a vida dos civis e dos militares norte-americanos em uma guerra sem fim”, comentou Silva. Segundo ele, Biden foi tomado de surpresa pela velocidade dos acontecimentos. “Houve uma imensa falta de planejamento. Exemplo claro e anedótico foi o que ocorreu no aeroporto de Cabul. Centenas de pessoas tentavam escapar da eventual perseguição do Talibã e, ao memso, tempo, havia vários voos decolando, com dezenas de lugares vazios.”

Denilde Holzhacker, professora de relações internacionais da ESPM-SP, concorda que a posição de Biden é “difícil”. “Ele tem uma pressão da sociedade para garantir a retirada dos norte-americanos e dos afegãos refugiados. Ao mesmo tempo, o cálculo dele é o quanto a permanência no Afeganistão atrairá ataques do Talibã contra seus compatriotas. A negociação do G7 será fundamental para que uma possível alteração da retirada ocorra de forma a garantir a segurança”, disse à reportagem. A estudiosa acredita que uma eventual desistência da retirada em 31 de agosto sinalizará fraqueza ainda maior de Biden, além de alto custo econômico. “A melhor saída seria negociar no âmbito multilateral”, sugeriu.

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“Durante as duas décadas de invasão ao Afeganistão, não havia muita clareza sobre o que se desejava para o país. É preciso lembrar que Mike Pompeo, secretário de Estado do governo de Donald Trump, esteve no Afeganistão para negociar com o Talibã, e Joe Biden acabou por manter o cronograma de retirada. Houve esse processo de negociação. A essa altura, acredito que não há muito o que fazer. Por outro lado, não é do interesse do Talibã antagonizar uma
relação com os EUA.”

Marco Antônio de Meneses Silva, coordenador do curso de relações internacionais do Centro Universitário Iesb

 

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Kamala promete "compromisso duradouro"

 (crédito: Evlyn Hockstein/AFP)
crédito: Evlyn Hockstein/AFP

A vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, prometeu, ontem, um “compromisso duradouro” de seu país na Ásia, em um momento em que a situação no Afeganistão, após a retirada das tropas estrangeiras, provoca temores em outros aliados de Washington. “Nosso governo tem um compromisso duradouro em Cingapura, no Sudeste Asiático e na região do Indo-Pacífico”, garantiu Harris em Cingapura, em uma pequena visita pelo Sudeste Asiático que também a levará ao Vietnã. “Estou aqui porque os Estados Unidos são um líder mundial e levamos isso a sério.”
A viagem da vice-presidente coincide com a queda do Afeganistão nas mãos dos talibãs e com as imagens de desespero de milhares de afegãos que tentam fugir do aeroporto de Cabul. A situação prejudica a imagem dos Estados Unidos como superpotência e aumenta o receio em outros países asiáticos, que durante muito tempo confiaram no apoio militar dos EUA para sua segurança.
Harris não respondeu às perguntas sobre perda de credibilidade e se limitou a explicar que a prioridade era “retirar os cidadãos americanos, os afegãos que trabalharam (com os Estados Unidos) e os vulneráveis, especialmente mulheres e crianças”.

Vietnã

A segunda etapa da viagem de Kamala Harris fará dela a primeira vice-presidente dos Estados Unidos a visitar o Vietnã. Figuras importantes da direita criticaram o momento da visita ao cenário de outra derrota militar histórica.
A saída do Afeganistão provocou recordações da queda de Saigon em 1975, com helicópteros retirando funcionários às pressas pelo teto da embaixada americana diante da chegada das tropas vietcongues. A Casa Branca insistiu em que a escolha do país responde aos desafios geopolíticos do futuro, longe do trauma da guerra do Vietnã. Hoje, Harris desembarca em Hanói, onde terá reuniões com representantes do governo vietnamita.

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