AFEGANISTÃO

Novo capítulo do terrorismo reabre feridas no Afeganistão

Oito horas após duplo atentado suicida matar dezenas de pessoas, entre elas 13 militares norte-americanos, em Cabul, um fragilizado presidente Joe Biden avisa que os EUA não se intimidarão, jura caçada aos terroristas e descarta parar resgate

Rodrigo Craveiro
postado em 27/08/2021 06:00
 (crédito: Wakil Kohsar/AFP)
(crédito: Wakil Kohsar/AFP)

Morador de Cabul, Ali Hassani, 28 anos, estava a 100m do Portão Abbey, a entrada leste do Aeroporto Internacional Hamid Karzai, quando pediu aos fuzileiros navais dos Estados Unidos para que permitissem seu acesso ao terminal aéreo.

“Eles ordenaram que eu me afastasse. Então, vi quatro homens suspeitos, que olhavam sem parar em direção ao portão e aos marines. Usavam vestes diferentes e não carregavam armas. Voltei à fila e, por volta das 18h (10h30 em Brasília), uma explosão ocorreu no local onde aqueles homens estavam, uns dois minutos depois”, contou ao Correio.

Um extremista tinha acabado de detonar os explosivos atados ao corpo. Logo em seguida, um segundo terrorista se explodiu a 8 minutos dali, em frente ao Baron Hotel, usado pelos britânicos. O duplo atentado deixou 60 mortos, incluindo 10 fuzileiros navais e outros três soldados norte-americanos, e 140 feridos, dos quais 18 militares dos EUA.

O grupo extremista Estado Islâmico-Khorasan (ISIS-K) assumiu o massacre, que fragilizou ainda mais o presidente dos EUA, criticado pela retirada do Afeganistão. Visivelmente consternado, Joe Biden chamou os 13 marines mortos de “heróis”, prometeu caçar os terroristas e garantiu que a operação de resgate de norte-americanos e afegãos vai continuar.

“Não vamos perdoar. Não vamos esquecer. Vamos caçá-los e fazê-los pagar. (…) Nós responderemos com força e precisão em nosso momento, em um local que escolhermos e da maneira de nossa escolha”, avisou o democrata, sem dar detalhes.

“Eu sou responsável por basicamente tudo o que aconteceu ultimamente”, admitiu Biden. “Nós não seremos intimidados”, reiterou, ao avisar que a operação de resgate no aeroporto não será interrompida. O presidente explicou que “concederá” forças adicionais no Afeganistão, caso os Estados Unidos necessitem de reforço.

A bandeira dos EUA foi baixada a meio-mastro na Casa Branca, em todos os prédios públicos de Washington, nas bases militares espalhadas pelo país e pelo exterior e em navios norte-americanos em missão. “Os corações meu e de Jill (primeira-dama) estão machucados. Estamos com as famílias que perderam seus entes queridos”, declarou. A última vez que um soldado dos Estados Unidos morreu no Afeganistão foi em fevereiro do ano passado.

O ex-presidente dos EUA Donald Trump mandou um recado indireto ao sucessor. “Esta tragédia nunca deveria ter sido permitida, o que torna a nossa dor ainda mais profunda e difícil de entender”, reagiu, ao enviar “as mais profundas condolências às famílias de nossos brilhantes e corajosos membros do serviço militar”.

Para Bruce Ackerman, professor de direito e de ciência política da Universidade de Yale, o duplo atentado de ontem representa uma vitória de curto prazo para Biden. “A mídia não mais retratará cenas dramatizando a situação no aeroporto. Em vez disso, enfatizará o ‘forte’ contra-ataque, em retaliação aos terroristas”, avaliou ao Correio. “Em um ou dois meses, essa resposta ‘contundente’ pode ser a impressão duradoura que os eleitores tirarão de todo o episódio, levando a uma recuperação substancial de apoio entre os centristas angustiados pela aparência anterior de ‘fraqueza’ de Biden.”

Caos

Depois da primeira explosão, diante do aeroporto de Cabul, Ali Hassani relatou uma troca intermitente de tiros durante oito minutos. “Os soldados dos Estados Unidos ficaram assustados, ficaram de pé sobre os tanques e lançaram gás lacrimogêneo sobre as pessoas que se amontoavam nas imediações do portão. Nessa confusão, mulheres e crianças também ficaram feridas”, lembra.

Poucas horas antes do ataque, a estudante Aisha Ahmed, 22, recebeu uma mensagem da amiga Tahmina, que tentava entrar no aeroporto, na esperança de fugir do regime imposto pelo Talibã. “Olá. Nós não iremos a nenhum outro lugar. Ficaremos aqui, mesmo que morramos”, disse Tahmina, uma das 60 vítimas do ataque.

O médico Sayed Ibrahim Sadat, 36, afirmou à reportagem que estava perto do Portão Abbey quando escutou um barulho parecido com tiros. “Vi uma grande explosão, a uns 100m de onde me encontrava. As pessoas choravam muito e gritavam ‘Allahu Akbar!’ (‘Deus é grande!’) e ‘Por favor, nos ajudem!’. Todos ficamos desesperados. A multidão era tão grande que vítimas foram arremessadas para dentro de um canal de esgoto”, relatou.

“Durante todo o dia, as emissoras de Cabul advertiram sobre o risco de atentados.” As imagens de tevê mostravam corpos jogados dentro do esgoto e na calçada, em meio a muito sangue e pedaços de roupas.

Dave DesRoches, professor do Centro para Oriente Médio e Sul da Ásia da Universidade da Defesa Nacional (em Washington), disse ao Correio que as 12 mortes de fuzileiros navais, ontem, são “uma tragédia para os Estados Unidos e uma derrota importante para Biden”.

“O presidente parece ter desconsiderado os conselhos de assessores ao ordenar uma retirada rápida do Afeganistão; ele também não se consultou com aliados dos EUA. Então, seus inimigos retrataram essa situação como um problema criado por ele mesmo. Tal argumento parece persistir: pela primeira vez, mais norte-americanos reprovam a gestão de Biden”, avaliou.

O especialista não acredita em uma resposta militar dos EUA antes de terça-feira, data-limite para a retirada. Segundo DesRoches, depois da saída das tropas, os Estados Unidos terão a capacidade muito reduzida para identificar e eliminar organizações terroristas no Afeganistão.

“É difícil destruir alvos extremistas quando não se está em solo e não se tem uma rede de inteligência governamental em quem confiar. O Talibã anunciou que não permitirá que facções terroristas se reestabeleçam no Afeganistão, mas é mais do que provável que o ISIS-K intensifique sua presença no país depois de 31 de agosto.”

» Depoimento

Inimigo invisível

Alexandre Danieli

“Estamos com o coração na mão. Parece que foi uma célula do ISIS. O Talibã agora sustenta não ter culpa nenhuma nos ataques. A gente fica bem triste, porque não era esperado isso. Nas negociações com o Talibã, ficara acordado de não ter agressão contra ninguém. O ISIS-K é um grupo invisível. Ninguém sabe onde estão os seus integrantes, nem como atacá-los. Somente grupos especiais, como a CIA (Agência Central de Inteligência), os Seals ou os Rangers, podem fazer operações secretas para combatê-lo. Ainda é cedo para saber o impacto dessas 13 mortes. Todo mundo aqui fica revoltado e triste pelas famílias. Quando a gente é fuzileiro naval e vai pra uma missão, sabemos que, quando vamos morrer, pelo menos morremos fazendo algo útil pelo país.

Com homem-bomba não tem falha. Somos treinados para não machucarmos nenhum civil sem ele atirar primeiro. Pelo que conheço o local, imagino que devia estar cheio de gente, vestindo roupas bem largas. Os homens-bomba devem ter se explodido a poucos metros dos fuzileiros navais. Não tem como você atacar extremista suicida. É um dos ataques mais covardes, porque não existe defesa.”

Ex-fuzileiro naval, 38 anos, catarinense naturalizado norte-americano, mora há 19 anos nos EUA

» Ele estava lá...

“Perto do Portão Abbey, a entrada leste do aeroporto, vi nove ou dez corpos, além de muitos feridos correndo, em fuga. Foi uma tragédia, que nos deixa ainda mais sem esperança. Não sabemos o que faremos. Ninguém se responsabilizará pelo nosso povo, depois da retirada dos norte-americanos do país. Acho que o Talibã e o Estado Islâmico-Khorasan (ISIS-K) são grupos parecidos. A diferença é que o ISIS-K não estava presente no Afeganistão. Os atentados de hoje (ontem) podem fortalecer o Talibã e a rede Al-Qaeda, ambos admirados pela etnia pashtun.”

Sayed Ibrahim Sadat, médico, 36 anos, morador de Cabul


» Palavra de especialista

Risco de guerra civil

Dave DesRoches

“Eu sempre tenho afirmado que o resultado mais provável da retirada dos EUA do Afeganistão é uma guerra civil com linhas religiosas (Talibã contra outros) e étnica (os pashtuns, grupo do qual os talibãs fazem parte, contra outras tribus). Fiquei surpreso com a rapidez com que o governo afegão entrou em colapso. Achei que haveria uma longa guerra civil, com o Talibã no controle do sul do país, e o governo de Ashraf Ghani dominando o norte e Cabul. É óbvio que minha previsão foi incorreta.

No entanto, remanescentes do governo, em sua maioria tadjiques, se concentram em sua fortaleza histórica do Vale do Panjshir. Com o passar do tempo, a incompetência administrativa do governo talibã chegará ao topo, e a população começará a se rebelar contra o Talibã. Assim que isso ocorrer, espero que as várias áreas não pashtuns do Afeganistão se voltem rapidamente contra o Talibã e deem início a uma longa guerra civil.”

Professor do Centro para Oriente Médio e Sul da Ásia da Universidade de Defesa Nacional (em Washington)

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Marca de atrocidades

O grupo terrorista Estado Islâmico-Khorasan (ISIS-K) surgiu em janeiro de 2015, como uma dissidência do Estado Islâmico (EI), no momento em que esta facção comandava o califado autodeclarado no Iraque e na Síria. Além de jihadistas do Paquistão e do Afeganistão, mantém em suas fileiras talibãs que se ressentem do fato de a milícia não ser extremista como desejam. O ISIS-K está mais concentrado na província afegã de Nangarhar (leste) e teria um contingente aproximado de 3 mil combatentes. O nome Khorasan deriva da região entre Afeganistão e Paquistão.
Em seu histórico, estão as piores atrocidades dos últimos anos, com ações contra escolas para meninas, hospitais e até uma maternidade, onde atiraram contra gestantes e enfermeiras. Também foram responsáveis pela decapitação de jornalistas. Adepto da sharia (a lei islâmica mais estrita), o grupo é avesso à democracia.
Segundo Amira Jadoon, professora do Centro de Combate ao Terrorismo da Academia Militar West Point dos EUA (em Nova York), desde seu surgimento, o ISIS-K tem confrontado o Talibã, o qual considera rival estratégico. “Enquanto as metas do Talibã são nacionalistas por natureza, o ISIS-K almeja eliminar as fronteiras nacionais, na busca de um Estado islâmico”, disse ao Correio. “A retirada dos EUA e o colapso do governo afegã criaram espaço para o ISIS-K construir sua base de recursos e revigorar sua campanha violenta.”
De acordo com Daves Des Roches, professor do Centro para Oriente Médio e Sul da Ásia da Universidade da Defesa Nacional (em Washington), o ISIS-K é considerado um movimento herético pelo Talibã. “É seguro dizer que tudo o que pode ser feito contra o ISIS-K, provavelmente, está sendo feito. Mas podemos esperar que capacidades adicionais de inteligência sejam direcionadas contra o grupo”, comentou à reportagem. (RC)

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