Vergonha e espanto. Assim reagiu o monsenhor Éric de Moulins-Beaufort, presidente da Conferência Episcopal da França (CEF), ao que é considerado o maior escândalo da história da Igreja Católica. Desde 1950, mais de 216 mil menores de idade foram vítima de abusos sexuais cometidos por pelo menos 3 mil padres e religiosos franceses. O número aumenta para 330 mil crianças, quando se leva em conta os laicos que trabalharam em instituições católicas. Os dados fazem parte de um relatório da Comissão Independente sobre Abusos Sexuais na Igreja (Ciase), encomendado pela CEF e pela Conferência de Religiosos e Religiosas da França (Corref). “Meu desejo, no dia de hoje, é pedir perdão”, desabafou Moulins-Beaufort.
Por sua vez, Jean-Marc Sauvé, presidente da Ciase e católico praticante de 72 anos, não poupou críticas à Igreja. “Até o começo dos anos 2000, constatamos uma indiferença profunda e cruel perante as vítimas. Não se acreditou nelas, não foram ouvidas, considerou-se que elas podem ter contribuído para o que aconteceu com elas”, lamentou, ao explicar que abusos tiveram caráter sistêmico.
O papa Francisco recebeu o relatório de mais de 2 mil páginas “com dor” e tristeza. De acordo com Matteo Bruni, diretor do Escritório de Imprensa da Santa Sé, o pontífice foi informado sobre a conclusão da Ciase durante recente visita de bispos franceses a Roma. Bruni afirmou que os pensamentos e orações do papa vão “para todas as vítimas” e suas “feridas”. O líder católico se disse grato pela coragem delas de erguerem a voz e externou o desejo de que a Igreja da França, “ao tomar consciência desta terrível realidade, e unida ao sofrimento do Senhor pelos seus filhos mais vulneráveis, possa percorrer o caminho da redenção”.
François Devaux , fundador da associação de vítimas La Parole Libérée (“A Palavra Libertada”), tinha apenas 10 anos quando foi abusado por um padre. Poucas horas depois de participar do lançamento oficial do relatório e de afirmar que os membros da comissão “retornaram do inferno”, ele falou ao Correio, por meio do WhatsApp. “Carrego uma dor e uma raiva profundas, além de uma história banal de um padre que abusou de um menino. Mas isso é passado. No futuro, está a responsabilização pelo crime.”
De acordo com Devaux, o escândalo ocorrido na França é o maior da história da Igreja Católica. “Ele só foi descoberto graças ao trabalho científico da comissão, o qual mostrou que os abusos são intrínsecos ao sistema. Todas as nações têm que assumir a responsabilidade pelo relatório. Isso se torna um grande problema para a humanidade.”
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Devaux espera que todas as 45 recomendações da Comissão Independente sobre Abusos Sexuais na Igreja (Ciase) sejam meticulosamente cumpridas. “O Brasil descobrirá as piores atrocidades, ante a forte influência católica do país”, advertiu. Ao ser questionado sobre o que leva padres a abusarem de crianças, ele afirmou que existe um contexto de ego, masculinidade, culpa, centralização de poder, submissão, completa ausência de racionalidade e adoração. “Há um estado de vulnerabilidade psíquica, principalmente durante a confissão, que permite invadir a alma da pessoa confessada.” A associação La Parole Libérée foi criada em dezembro de 2015 e acabou dissolvida cinco anos depois. Seu trabalho foi fundamental para a instalação da Ciase.
Para Mike McDonnell, 53 anos, gerente de comunicação da Rede de Sobreviventes de Abusos Praticados por Padres (Snap), o único caminho verdadeiro para a justiça é permitir que as vítimas tenham acesso aos tribunais, independentemente de quanto tempo se passou desde o crime.“Espero que este número (de 216 mil vítimas) abra os olhos dos fiéis e os encoraje a se juntarem aos sobreviventes. Basta de silêncio e de proteção ao direito canônico. Vidas de inocentes mudam para sempre, e as vítimas merecem justiça e apoio”, disse ao Correio o norte-americano que foi abusado pelos padres John P. Schmeer e Francis X, Trauger, dos 11 aos 13 anos, na Filadélfia.
Por sua vez, o jornalista chileno Juan Carlos Cruz Chellew, 59, vítima do ex-padre Fernando Karadima quando tinha 15 anos, classificou o escândalo a França como “uma vergonha”. “Este é um dia muito triste, mas animo-me a seguir lutando pelas vítimas. Se não houver uma reparação a elas, nunca sairemos desse buraco. O Vaticano precisa ir até as últimas consequências e buscar justiça para essas pessoas”, afirmou à reportagem, por telefone. “Peço que as vítimas sigam lutando e busquem a verdade, com transparência e fazendo com que os culpados paguem, tanto os abusadores quanto os acobertadores”, desabafou Juan Carlos, que, em 28 de abril de 2018, foi hospedado pelo papa Francisco, na Casa Santa Marta, no Vaticano, para debaterem o tema.
» Os números do relatório
Até 330 mil vítimas
Pelo menos 216 mil menores de idade foram abusados diretamente por padres, diáconos e religiosos na França, entre 1950 e 2020. Se levados em consideração os laicos ligados a instituições da Igreja Católica, o número aumenta para 330 mil. Após o apelo para ouvir testemunhas, a Ciase recebeu 6.471 relatos — 3.652 por telefone, 2.459 e-mails e 360 cartas. De todos, conseguiu entrevistar 250 vítimas de abusos sexuais durante sua infância.
3 mil religiosos agressores
O número de agressores homens, entre padres e religiosos, ficaria entre 2,9 mil e 3,2 mil — o que representa 2,5% e 2,8% dos 115 mil que integraram a Igreja nos últimos 70 anos na França.
45 recomendações
A Comissão Independente sobre Abusos Sexuais na Igreja (Ciase) elaborou 45 recomendações para a Igreja Católica: do momento de ouvir as vítimas à reforma do direito canônico, passando pelo reconhecimento, por parte da Igreja, de sua responsabilidade “sistêmica” nos fatos.
970 dias de trabalho
Iniciada em 8 de fevereiro de 2019, a investigação da comissão trabalhou durante 970 dias até a apresentação do relatório solicitado pela Conferência Episcopal (CEF) e pela Conferência de Religiosos e Religiosas da França (Corref).
3,8 milhões de euros
A Ciase calcula em 3,8 milhões de euros (cerca de R$ 24 milhões) o custo total da elaboração do relatório, fora a quantidade de trabalho voluntário de seus integrantes.
» Eu acho...
“Por um lado, foi um dia triste. Por outro, alegro-me por terem tirado tudo isso à luz. Há muitas vítimas que foram escutadas pela primeira vez. É espantoso saber que, apenas em um país, mais de 300 mil crianças foram abusadas e 3 mil sacerdotes violaram esses menores. É uma verdadeira vergonha!”
Juan Carlos Cruz Chellew, jornalista chileno, abusado pelo ex-padre Fernando Karadima quando tinha 15 anos.
“O perdão é uma palavra. A Igreja precisa de tomar ações. Ninguém sabe mais sobre o abuso de menores e ninguém fez menos do que a própria Igreja Católica.”
Mike McDonnell, 53 anos. Abusado pelos padres John P. Schmeer e Francis X. Trauger, dos 11 aos 13 anos, em Filadélfia (Pensilvânia, Estados Unidos).
“A Igreja Católica deve reconhecer todas as vítimas de abuso sexual como verdadeiros santos da Igreja. É preciso que todas as denúncias escondidas pelo Vaticano venham à tona. A Santa Sé tem que realizar uma reforma imensa na instituição. Um pedido de desculpas não é suficiente. Eu tenho mais de 40 anos de sofrimento e de fracassos por culpa da Igreja.”
Eduardo Lopez de Casas, líder da Rede de Sobreviventes de Abusos Praticados por Padres (Snap) em Houston (Texas).
» Três perguntas para...
François Devaux, fundador da associação de vítimas La Parole Libérée (“A Palavra Libertada”)
Como o senhor avalia o impacto da conclusão de que 216 mil crianças foram abusadas dentro da Igreja Católica?
Esse número me dá um frio na espinha. Atrás dele, existem vidas e famílias em sofrimento. São traumas que têm repercussões por várias gerações. A Comissão Independente sobre os Abusos Sexuais na Igreja (Ciase) realizou um trabalho científico de veracidade, o qual lançou luz sobre a dimensão sistêmica de um problema singular na Igreja: o abuso espiritual, o qual permite todos os tipos de abusos, incluindo a pedofilia.
A Conferência dos Bispos da França pediu perdão às vítimas. O senhor os perdoa?
A questão do perdão é inerentemente perversa. Porque ela culpabiliza a vítima, ao colocar a violência traumática que ela sofreu de volta ao contexto da espiritualidade, da dimensão sacrificial, à imagem do Cristo morto na cruz. O perdão é uma coisa íntima, ele se baseia na troca de confiança e de gentileza. Ainda é necessário que a responsabilidade seja reconhecida, para que alguém possa perdoar isso. E a responsabilidade começa com a indenização individual para todas as vítimas.
O que o espera da Igreja Católica depois deste escândalo?
A Igreja não tem outra escolha, em vista da imensidão da reforma urgente que deve empreender. Ela deve organizar um concílio (reunião de autoridades eclesiásticas) mundial. Tal reforma deverá ser transparente, aberta aos leigos e às mulheres, e, provavelmente, encabeçada por uma coalizão internacional.
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