Em um cenário incerto, os chilenos elegem hoje o novo presidente do país, tendo de escolher entre dois pólos opostos. De um lado, o deputado esquerdista Gabriel Boric, 35 anos, defende um Estado que reduza as fortes desigualdades sociais. Do outro, o advogado de extrema direita José Antonio Kast, 55, que pretende restaurar a ordem sem interferir no livre mercado. Os dois nomes não despertaram a paixão do eleitorado, que não se polarizou, na avaliação de analistas.
Metade dos chilenos aptos a votar afirma estar indeciso, praticamente o mesmo percentual (53%) de pessoas que não foram às urnas no primeiro turno. O voto deixou de ser obrigatório em 2012. "Essa é a grande incógnita. Quantos indecisos que não votaram no primeiro turno vão fazê-lo desta vez? Isso nos deixa diante de um fim imprevisível", avisa Claudio Fuentes, cientista político e professor da Universidade Diego Portales.
Mauricio Morales, professor da Universidade de Talca, lembra que, em 21 de novembro, Boric e Kast somaram 54% dos votos, mas 46% dos eleitores escolheram os demais candidatos. "Portanto, eles foram forçados a se deslocar na direção dos eleitores muito mais moderados ou do centro." As pesquisas recentes refletem a falta de favoritismo: realizada entre 14 e 16 de dezembro com 2.218 pessoas, a consulta da brasileira AtlasIntel revelou empate técnico nas intenções de voto, com 48,4% para Boric e 48,5% para Kast. A margem de erro é de 2 pontos percentuais.
As projeções de um resultado apertado levaram Kast a dizer, em uma entrevista televisiva, que é possível que as eleições sejam decididas nos tribunais. "Mais do que fraude, pode haver erros, e um voto por mesa pode mudar o destino da eleição. No Chile, temos 45 mil mesas e um voto por mesa pode fazer com que uma ou outra pessoa ganhe", afirmou, sendo rebatido por Boric. "É algo saído de um manual o que a extrema direita está fazendo no Chile, é possível perceber. É exatamente o mesmo que Trump fez. Eles estão começando a questionar os eventuais resultados", reagiu, referindo-se ao ex-presidente norte-americano.
Desconfiança
A desilusão com os políticos e seus partidos no Chile reflete a queda da confiança em todas as suas instituições do país, dizem especialistas. Mas também, segundo formadores de opinião e sociólogos, a eleição de domingo ressuscitou um clima de plebiscito semelhante ao de 1988, quando os cidadãos tiveram que votar Sim ou Não à continuidade do ditador Augusto Pinochet (1973-1990). Na época, Kast era uma parte visível do Sim; a família Boric fez campanha para o Não. A sociedade chilena votou para se livrar do regime militar.
"Um comparecimento muito baixo (como o atual) também reflete uma espécie de desencanto ou desagrado com a política e as opções disponíveis", afirma Michael Shifter, presidente do Diálogo Interamericano, em Washington. "As pessoas não são tão polarizadas quanto as duas opções políticas", acrescenta Shifter, listando as questões que movem a maioria: estender direitos sociais e fazer reformas para melhorar a educação e a saúde, "mas também querem ordem e combate à delinquência".
O analista considera que "não são ideias contraditórias", mas os dois candidatos promoveram essas propostas como se fossem questões opostas. "Há muita desinformação, muito exagero, como quando dizem que Boric é outro [Hugo] Chávez (...), no fim das contas, a maioria dos chilenos que votar no dia 19 de dezembro o fará por medo do outro candidato, porque não querem um Chile mais de direita ou porque temem que Boric seja controlado pelo partido comunista e transforme o Chile em outra Venezuela", acredita.
Nulo
A ex-presidente Michelle Bachelet, atual alta comissária dos Direitos Humanos da ONU, anunciou que seu candidato é Boric. No entanto, várias personalidades declararam publicamente voto nulo. Um dos últimos a reconhecer a opção foi José De Gregorio, ex-ministro do governo do socialista Ricardo Lagos e ex-presidente do Banco Central. "Vou anular meu voto. Apesar da pressão que tenho de todos os lados, acho que é a coisa mais honesta", disse De Gregorio à mídia local. "Ambos têm potencial, mas a verdade é que não gosto de nenhum deles", acrescentou.
Ernesto Ottone, sociólogo e ex-conselheiro presidencial de Lagos (2000-2006), não vai votar. Ele viajou para Paris, mas não antes de se declarar "sem candidato". "Sou uma pessoa de esquerda democrática, o que se poderia chamar de social-democrata, portanto, reformista, me sinto muito representado quando há uma aliança de centro-esquerda e essa situação não existe", explicou. "(Kast) é um homem de extrema direita. Boric representa uma esquerda radical e populista", completou Ottone, que se mostra especialmente preocupado com a aliança com o Partido Comunista, que no Chile "continua a ter uma doutrina que não é democrática".
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Complexidade na economia
Quem quer que vença o segundo turno no Chile entre o ultradireitista José Antonio Kast e o esquerdista Gabriel Boric, enfrentará um cenário econômico complexo: após a vigorosa recuperação de 2021, prevê-se uma desaceleração do crescimento e um aumento da dívida pública no próximo ano. Os dois candidatos representam projetos antagônicos. Enquanto o jovem deputado de esquerda, de 35 anos, é liberal em temas sociais e defende "um Estado de bem-estar" ao estilo europeu na área econômica, seu adversário, Kast, um advogado de 55 anos, defende o modelo econômico neoliberal e tem uma visão ultraconservadora em temas sociais, expressa em sua oposição ao aborto e ao casamento entre pessoas de mesmo sexo.
Kast propõe uma redução dos impostos às grandes empresas e manter o sistema de pensões privado. Boric planeja uma reforma tributária que inclua maior taxação dos super-ricos e à alta renda para arrecadar 5% adicionais do PIB, que se destinaria a ampliar a participação do Estado na provisão de seguridade social. O deputado de esquerda é favorável a um novo sistema de pensões que substitua o herdado da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), um tema central na sociedade chilena e que tem sido uma das principais reivindicações dos protestos sociais nos últimos anos pelas baixíssimas aposentadorias que pagam.
Após registrar uma queda de 5,8% em 2020 em consequência das restrições sanitárias motivadas pela pandemia, o Chile terminará 2021 com uma expansão do PIB em torno de 11,5%. Boa parte desta recuperação se deve ao forte aumento do consumo privado, após os bônus estatais pagos pela pandemia e os três saques antecipados dos fundos privados de pensões (de até 10% de cada vez), aprovados pelo Congresso devido à forte pressão popular. Para 2022, espera-se que o Banco Central volte a aumentar as taxas de juros para conter a inflação, que encerrará o ano em torno de 6%, o dobro da meta. Quem for eleito, "terá que se encarregar de um cenário macroeconômico complexo, no qual terá que calibrar a retirada do estímulo fiscal", diz Castañeda.