Estados Unidos

Decisão da Suprema Corte sobre aborto divide os Estados Unidos

Em uma decisão histórica, Justiça anula a sentença "Roe v. Wade", de 1973, e retira de milhões de mulheres a prerrogativa de escolherem pela interrupção da gravidez. Biden adverte que a saúde e a vida das norte-americanas estão em risco

Rodrigo Craveiro
postado em 25/06/2022 06:00
 (crédito: Anna Moneymaker/Getty Images/AFP)
(crédito: Anna Moneymaker/Getty Images/AFP)

Desde ontem, o aborto deixou de ser direito constitucional federal nos Estados Unidos. Por cinco votos a favor, três contra e uma abstenção, a Suprema Corte anulou a "Roe v. Wade", uma sentença anunciada há 49 anos que resguardava a prerrogativa das mulheres de interromperem a gravidez. Com a decisão, cada estado norte-americano terá a liberdade de autorizar ou proibir o aborto.

A revogação do direito coloca em xeque outras conquistas sociais, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo. "Em futuros expedientes" sobre o respeito à privacidade, "deveríamos revisar todas as jurisprudências", escreveu o juiz Clarence Thomas em nota que acompanha a decisão. Os três juízes progressistas que se opuseram à mudança da lei são  Stephen Breyer, Sonia Sotomayor e Elena Kagan. 

Poucas horas depois do anúncio da máxima instância do Judiciário, os procuradores-gerais de Oklahoma, Arkansas e Missouri assinaram uma certificação que proíbe a morte do feto. O Alabama fechou todos os centros de aborto. A governadora republicana de Dakota do Sul, Kristi Noem, declarou a ilegalidade da interrupção da gestação. Até o fechamento desta edição, mais nove estados se preparavam para criminalizar o aborto. 

Enquanto a direita conservadora e religiosa comemorava, o presidente dos EUA, Joe Biden, fazia um discurso solene em rede nacional de televisão. "Hoje, a Suprema Corte dos EUA tirou expressamente do povo americano um direito constitucional que já havia reconhecido. Eles não o limitaram, eles simplesmente o tiraram. (...) É um dia triste para a Corte e para o país", afirmou o democrata, que pediu aos cidadãos que combatam a medida nas urnas, durante as eleições legislativas de 8 de novembro. Biden acredita que somente o Congresso pode restituir o direito constitucional ao aborto, por meio de uma lei federal. 

Segundo ele, a sentença "Roe v. Wade" reafirmava os princípios de igualdade básicos, "de que as mulheres têm o poder de controlar o seu destino". "Também  reforçou o direito fundamental à privacidade — o direito de cada um de nós escolher como viver nossas vidas", acrescentou. "Agora que a Roe se foi, sejamos claros: a saúde e a vida das mulheres desta nação estão em risco."

"Foram três juízes nomeados por um presidente — Donald Trump — que estavam no centro da decisão de hoje", observou. Os três magistrados citados por Biden são Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett. Também votaram contra a "Roe v. Wade" Samuel Alito e Clarence Thomas. Trump celebrou a decisão. "É a vontade de Deus", declarou à emissora Fox News. 

"Ideologia extrema"

Biden explicou que a decisão da Suprema Corte é "a realização de uma ideologia extrema e um erro trágico". "É  uma decisão tão extrema que mulheres e garotas serão forçadas a dar à luz o filho de seu estuprador", disse o presidente. A vice-presidente, Kamala Harris, enviou uma mensagem às norte-americanas. "Sei que há mulheres por aí que têm medo. Para aquelas que se sentem sozinhas e assustadas: quero que saibam que o presidente e eu estamos lutando por vocês e por seus direitos."

O pedido de revogação da "Roe v. Wade" foi feito por Lynn Fitch, procuradora-geral do Mississippi. "O dia de hoje marca uma nova era na história americana. 'Roe v. Wade' finalmente ficou para trás. Essa decisão é uma vitória, não apenas para as mulheres e as garotas, mas para a própria Corte", disse. 

Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, lamentou "um duro golpe aos direitos humanos das mulheres e à igualdade de gênero". Por sua vez, o ex-presidente norte-americano Barack Obama (2009-2017) e Nobel da Paz considerou que a Corte "não apenas reverteu quase 50 anos de precedente histórico, mas relegou a mais pessoal decisão que alguém pode tomar aos caprichos de políticos e idealistas —  atacando as liberdades fundamentais de milhões de americanos".

Ativistas contrários à interrupção da gravidez comemoram diante do prédio da Suprema Corte, em Washington
Ativistas contrários à interrupção da gravidez comemoram diante do prédio da Suprema Corte, em Washington (foto: Anna Moneymaker/Getty Images/AFP)

Evonnia Woods — ativista da Reproaction, ONG que aprova o direito ao aborto nos EUA — disse ao Correio que a decisão da Suprema Corte colocará fim ao acesso à interrupção da gestação em metade dos estados norte-americanos. "As pessoas poderão viajar para alguns estados, onde o aborto é legal, se tiverem meios para isso. O acesso ao aborto continuará a ser um direito humano. Fundos pró-aborto e redes de apoio continuarão a financiar o procedimento. A Reproaction seguirá a educar pessoas e a treiná-las para realizarem abortos autogeridos com pílulas. A luta pelo acesso ao aborto legal em todos os estados prosseguirá", garantiu Woods, que interrompeu uma gestação aos 28 anos. 

Por sua vez, Lila Rose — líder da ONG pró-vida Live Action — admitiu o caráter "histórico" da medida. "A 'Roe v. Wade' acabou. Crianças viverão por causa dessa decisão de reverter a ficção constitucional da 'Roe v. Wade'. Nos EUA, 63 milhões de crianças morreram nas mãos da indústria do aborto, desde que Roe restringiu a habilidade de comunidades de protegerem vidas inocentes", declarou.

 

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  • Ativistas contrários à interrupção da gravidez comemoram diante do prédio da Suprema Corte, em Washington
    Ativistas contrários à interrupção da gravidez comemoram diante do prédio da Suprema Corte, em Washington Foto: Anna Moneymaker/Getty Images/AFP
  • 2020. Crédito: Arquivo Pessoal/reprodução. Lawrence Gostin, professor de medicina da Universidade Johns Hopkins e da Universidade Georgetown, e diretor do Centro de Colaboração sobre Direito à Saúde Global e Nacional da Organização Mundial da Saúde (OMS)
    2020. Crédito: Arquivo Pessoal/reprodução. Lawrence Gostin, professor de medicina da Universidade Johns Hopkins e da Universidade Georgetown, e diretor do Centro de Colaboração sobre Direito à Saúde Global e Nacional da Organização Mundial da Saúde (OMS) Foto: ArquivoPessoal

Duas perguntas para...

 (crédito: ArquivoPessoal)
crédito: ArquivoPessoal

Lawrence Gostin, professor de medicina da Universidade Johns Hopkins e da Universidade Georgetown e especialista em direito de saúde pública

Como o senhor vê a decisão de Suprema Corte de revogar a decisão Roe vs. Wade?

O aborto, agora, será proibido em mais da metade dos estados nos EUA. Isso significa que, em metade do país, as mulheres não terão acesso seguro e legal aos serviços de aborto. Tal medida impactará os direitos reprodutivos femininos, mas também sua saúde e segurança. A criminalização do aborto não resulta em menos abortos. Apenas em mais abortos inseguros, aneaçando a saúde e a vida das gestantes.

O senhor vê a interferência da Justiça em uma decisão privada, que cabe apenas às mulheres?

A decisão de uma mulher de levar um feto a termo está entre as decisões mais íntimas e pessoais que uma pessoa pode tomar. O direito das mulheres à integridade corporal está sendo minado pela Suprema Corte. Trata-se também de equidade e justiça, porque afetará principalmente mulheres pobres e minorias raciais. Serão duas Américas. Uma onde o aborto é seguro e legal, e outra onde é proibido. 

Mensagem contra o medo

 (crédito: Instagram)
crédito: Instagram

A vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, publicou em seu perfil no Instagram uma foto em que aparece assistindo à cobertura da CNN sobre a revogação da "Roe v. Wade". Ela escreveu que, pela primeira vez em quase 50 anos, a "Roe v. Wade" não é a lei do país.  "Milhões de mulheres nos EUA irão para a cama, nesta noite, sem acesso ao cuidado à saúde e aos cuidados reprodutivos que tinham até esta manhã — o acesso à atenção à saúde que suas mães e avós tiveram por meio século. É a primeira vez, em gerações, que um direito constitucional é arrancado do povo", escreveu Kamala, ao exortar união em defesa da liberdade e da autodeterminação. "Sei que há mulheres por aí que tê medo. Para aquelas que se sentem sozinhas e assustadas: quero que saibam que o presidente e eu estamos lutando por vocês e por seus direitos. Estamos nessa luta, juntas."

 

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