Os gritos se misturavam ao barulho metálico, diante do prédio do Congresso da Nação Argentina e a poucos quilômetros da Casa Rosada: "Piquete y cacerola la lucha es una sola" ("Piquete e panela, a luta é uma só"). Poucas horas depois de um panelaço — o primeiro em 11 dias de governo de Javier Milei — em repúdio à modificação e revogação de mais de 30 normas, por meio de um decreto de necessidade e urgência (DNU) para desregular a economia, o presidente ultralibertário desafiou os críticos e ameaçou novas ordens executivas. "Eu lhes aviso que vem mais. Há mais. Logo vocês irão se inteirar", declarou, em entrevista à emissora de tevê C5N. Ele estimou em 380 mil o número de leis, regulações e normativas que dificultam o funcionamento da economia. À rádio Rivadavia, Milei ironizou os participantes do panelaço. "Pode ser que haja pessoas que sofram de síndrome de Estocolmo, pois estão abraçadas e apaixonadas pelo modelo que as empobrece. (...) A República está em risco com o populismo, não com a liberdade", disse.
- A busca por um presente às vésperas de um Natal difícil na Argentina
- Milei decreta desregulação econômica na Argentina
- 'Terapia de choque' e protestos: os primeiros dias do governo Milei
- Argentina volta às ruas contra ajuste de Milei e protocolo antipiquete
Os próximos anúncios de Milei podem impactar os rendimentos e os salários do funcionalismo público, especialmente da Justiça. Nesta quinta-feira (21), um amparo coletivo apresentado pelo Observatorio del Derecho a la Ciudad, pela Central de Trabajadores y Trabajadoras de la Argentina (CTA) e pela Asociación Trabajadores del Estado (ATE) foi apresentado à Suprema Corte com um pedido de impugnação do decreto presidencial. A imprensa argentina informou que o Congresso teria formado maioria absoluta para vetar o DNU de Milei, o que configuraria um choque entre poderes. O pacote da Casa Rosada transforma todas as empresas estatais em sociedade anônima, a fim de acelerar a privatização; muda a lei de aluguel e propõe ampla reforma trabalhista para limitar o direito de greve.
Líder do Polo Obrero e um dos movimentos responsáveis pela marcha da última quarta-feira, Eduardo Belliboni disse ao Correio que o "decretaço" assinado por Milei para desregular a economia é "ilegal e inconstitucional", além de clara violação aos direitos adquiridos segundo o regime jurídico vigente na Argentina. "Seguramente, ele vai incitar enormes protestos. Também estamos reivindicando por uma paralisação geral nacional e um plano de luta", explicou, por telefone. Para o dirigente de esquerda, as medidas mais polêmicas e que prejudicarão a população são a eliminação do direito à greve e a intromissão do Poder Executivo em atributos do Legislativo. "Isso praticamente significa a supressão do Congresso, pois indica que o Poder Executivo passará a legislar. O pacote de Milei também introduz graves situações sociais, ao liberar os empresários de terem algum tipo de controle sobre as exportações e sobre os preços", acrescentou.
Belliboni alerta que a desregulação da economia tende a agravar uma "carestia brutal". "As decisões de Milei vão gerar uma enorme pobreza e aprofundar a crise social que a Argentina atravessa", advertiu. "Quem se beneficiará serão o Fundo Monetário Internacional (FMI), que buscará aumentar a dívida; os empresários que têm bônus ajustados de acordo com a inflação; e o agronegócio, que não terá mais retenções. O povo não tem o que celebrar com essas ações", reforçou.
Ainda segundo Belliboni, o panelaço da madrugada de ontem foi um respaldo à mobilização ocorrida na quarta-feira (20) pela manhã. "Nós bloqueamos ruas e pontes em todo o país. O protocolo da ministra (Patricia Bullrich, de Segurança) fracassou. Esse é o início do processo de luta pelas reivindicações e pela liberdade democrática. Vamos derrotar a tentativa de Milei de converter a Argentina em um reinado da liberdade. Um reinado para capitalistas e especuladores, e a prisão para nós, que lutamos contra eles."
Por sua vez, Gabriel Solano — deputado e dirigente nacional do Partido Obrero e da Frente de Izquierda — denunciou ao Correio que o decreto de Milei é uma "usurpação de poderes inerentes ao Congresso Nacional". "Ele anula leis, o que se mostra contrário à Constituição argentina. Foi um gesto muito duro, que avança sobre questões centrais. O texto impõe uma reforma trabalhista duríssima, eliminando direitos históricos dos trabalhadores, que têm a ver com o regime de indenizações em caso de demissão, os convênios coletivos de trabalho, a jornada de oito horas e o direito à greve, que fica fortemente condicionado e cerceado", comentou.
O congressista vê as alterações no Códigos Civil e Comercial como de gravidade inusitada. Solano cita, por exemplo, a anulação da lei de aluguéis, a fim de permitir a especuladores imobiliários dolarizarem os contratos. "Isso agravará, ainda mais, o acesso à moradia, que está muito prejudicada", previu. Solano defendeu que todas as medidas tomadas pela Casa Rosada sejam rejeitadas pela população e alertou que elas chegam atreladas ao reforço da repressão. "O protocolo antipiquete de Bullricha afeta direitos consagrados pela Constituição em matéria de protesto sociais, os quais ficam gravemente limitados."
EU ACHO...
"As medidas de Milei afetarão a população mais pobre, pois é ela quem paga a crise com a inflação. Hoje, a Argentina enfrenta uma inflação mensal de cerca de 60%. A taxa de pobreza superava 45% da população, no mês passado. Agora, passamos dos 60%. São 10 milhões de indigentes. Eles serão osd mais prejudicados."
Eduardo Belliboni, líder do movimento esquerdista Polo Obrero
"O que prevalece nas medidas de Milei é o interesse capitalista. Não há ajuste, mas uma transferência de recursos. Foi feita uma desvalorização que elevou o valor do dólar em 120%, favorecendo quem detém títulos de dívida pública atrelados à moeda americana. Por outro lado, os salários, as aposentadorias e os rendimentos dos trabalhadores são destruídos. A âncora não é fiscal, como disse Milei. A âncora é a destruição dos salários. Precisamos de uma greve geral ativa imediata. Vamos derrotar esse plano de guerra contra os trabalhadores."
Gabriel Solano, deputado e dirigente nacional do Partido Obrero e da Frente de Izquierda