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'Não houve demora', diz Leite sobre evacuações em enchentes no Rio Grande do Sul

Em entrevista à BBC News Brasil, governador do Rio Grande do Sul defende que alertas foram efetuados nos momentos devidos e afirma confiar na 'boa vontade' do governo federal

Cheias sem precedentes atingiram centenas de cidades gaúchas -  (crédito: Sebastião Moreira/EPA-EFE/REX/Shutterstock)
Cheias sem precedentes atingiram centenas de cidades gaúchas - (crédito: Sebastião Moreira/EPA-EFE/REX/Shutterstock)

Em meio ao maior desastre climático da história do Rio Grande do Sul, o governador do Estado, Eduardo Leite, negou, em entrevista à BBC News Brasil, que tenha demorado a pedir a evacuação de pessoas que viviam em áreas de risco sujeitas às inundações que afetaram mais de 92% dos municípios gaúchos.

"Não houve demora", disse o governador.

No comando do governo gaúcho desde 2019 — com uma breve interrupção em 2022 —, Leite enfrenta a terceira crise climática causada por chuvas intensas nos últimos dois anos.

Até agora, já foram contabilizadas 154 mortes, mais de 100 pessoas desaparecidas e um prejuízo material estimado em dezenas de bilhões de reais nas chuvas que começaram no final de abril.

Leite recebeu a reportagem da BBC News Brasil no gabinete improvisado montado em uma área segura da capital, Porto Alegre, porque o centro administrativo do governo, localizado no bairro Praia de Belas, foi atingido pelas inundações.

Do lado de dentro do gabinete temporário era possível ouvir o barulho de serras, martelos e carrinhos-de-mão puxados pelos operários que tentam adaptar as novas instalações.

Na entrevista concedida à BBC News Brasil, Leite reiterou que não houve lentidão na ordem para a evacuação de pessoas que viviam em regiões propícias às enchentes mesmo diante dos alertas meteorológicos indicando que havia a possibilidade, no dia 30 de abril, de elevação brusca no nível dos rios do Estado.

Em suas redes sociais, Leite só começou a pedir a evacuação de moradores do Vale do Taquari, uma das regiões mais afetadas, no dia 1º de Maio.

Apesar de ter criado um comitê científico para ajudar o Estado no processo de reconstrução, ele deu a entender que a ciência não terá a palavra final nesse esforço.

"Não tenho dúvida de que nós teremos conflitos a serem arbitrado", disse.

Leite ainda defendeu sua política ambiental, criticada por acadêmicos e organizações não-governamentais por conta das mais de 400 alterações na legislação estadual sobre o assunto.

O governador também disse confiar na "boa intenção" do governo federal em relação aos valores anunciados para a reconstrução do Estado, estimada, inicialmente, em aproximadamente R$ 50 bilhões.

O governo Lula anunciou uma serie de medidas de socorro ao RS, incluindo suspensão do pagamento da dívida do Estado por três anos e auxílio direto às familias. Análise da BBC News Brasil mostrou que a comunicação oficial tem superestimado os bilhões enviados, considerando como investimentos federais linhas de crédito subsidiadas pela gestão.

Confira, abaixo, os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - Como essa tragédia mudou sua rotina? Quantas horas, por exemplo, o senhor tem dormido desde o início dessa tragédia?

Eduardo Leite - No dia 29 de abril, nos foi reportado pela sala de situação que nós tínhamos uma previsão de chuvas intensas nos dias seguintes, com possibilidade de resposta hidrológica, ou seja, elevação do nível dos rios em áreas críticas do Estado e nós emitimos os alertas [...] ali, decidimos fazer um aviso público disso que prenunciávamos, ali, traria muitos problemas para o Estado.

No dia seguinte, dia 30, a gente percebe um agravamento dessa situação. Eu reporto, então, às instâncias federais, aos ministérios, às Forças Armadas, pedindo apoio para fazer salvamentos que, nós já projetávamos, seriam em grande escala [...]

Os dias que se seguiram foram especialmente duros e tensos porque envolviam essa subida do nível dos rios, a necessidade de resgates nas diversas localidades e isso não tem hora para fazer. Então, ali as noites de sono foram especialmente curtas. Nem sei dizer quantas horas. Eu diria duas ou três horas [por noite] interrompidas por telefonemas.

BBC News Brasil - No dia 29 de abril, o senhor usou as suas redes sociais para alertar sobre a chegada das chuvas. No dia 30, o Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) enviou um alerta de que havia probabilidade alta de chuvas intensas no Estado. No dia 30, o senhor fez uma live, mas não cita o termo evacuação. Apenas no dia 1º de Maio, quando já havia pelo menos 10 mortes, o senhor pede a evacuação na região do Vale do Taquari. Por que o senhor demorou do dia 29 de abril ao dia 1º de maio para solicitar a evacuação?

Leite - Não houve demora. A gente fez os alertas e dissemos justamente: “Vai ter elevação de nível dos rios”; “Saiam das áreas de risco”. [...] Não me recordo agora os termos que foram utilizados nos alertas que fizemos.

Mas nós nos encarregamos de disseminar essas informações aqui para a Defesa Civil dos municípios, que fazem todo um trabalho também para retirada das pessoas das áreas de risco [...] Tudo que me foi reportado pela nossa equipe da sala de situação, eu me encarreguei de levar conhecimento público imediatamente, nos termos que me passaram [...]

Depois do jogo jogado, é fácil dizer: “Ah...subiu tanto... podia ter feito isso, podia ter feito aquilo”. Naquela condição que nós tínhamos, com aquelas informações, as providências foram sendo adotadas de acordo com o que se observava.

BBC News Brasil – Em setembro de 2023, vocês tinham vivido aqui no Rio Grande do Sul uma situação que não é da mesma dimensão, mas igualmente trágica [nota da redação: naquele mês, chuvas atingiram o Estado e levaram à morte de 54 pessoas]. De alguma forma o senhor se sente responsável ou arrependido por não ter dado o alerta de evacuação antes?

Leite - Nós demos os alertas. Nós falamos desde o dia 29. Está lá registrado, “Saiam dos locais de risco”; “Teremos chuvas fortes”; “É importante todos estarem em alerta”. [...] A gente vem trabalhando nisso, inclusive nós contratamos novos radares meteorológicos que estão chegando para o Estado poder ter melhor leitura da situação climática [...] Naquele momento, nós demos os alertas no nível da informação que nos permitia dar.

BBC News Brasil - Não seria o caso de, já no dia 29, solicitar a evacuação de pessoas que tivessem regiões extremamente afetadas, como a de Taquari, que já havia sido afetada em Setembro de 2023?

Leite - Mas isso foi encaminhado junto com as estruturas de defesa civil das comunidades. Então nós alertamos. [...] As regiões foram alertadas e os municípios começaram a fazer retiradas de famílias dessas localidades. E conforme nós fomos observando um agravamento, foi-se intensificando essas ações.

Para mim, é claro que o Estado precisa reforçar as suas estruturas. Nós estamos trabalhando na lógica de buscar reforçar as estruturas para ter a maior precisão possível dessa previsão meteorológica e da resposta hidrológica que vai ter em cada um dos rios [...]

Não temos ainda precisão nesse sistema que me permita dizer: “Neste rio, nessa localidade, vai subir até tal cota, (vamos ter) tal resposta hidrodinâmica virá”. É isso que nós estamos perseguindo para ter o melhor dos sistemas.

BBC News Brasil – O senhor disse que a previsão não indicaria que iria subir com rapidez, mas o alerta feito pelo Cemaden no dia 30 [de abril] citava especificamente que haveria uma elevação brusca nos rios de várias regiões, inclusive cita nominalmente o rio Taquari. Já há mais de 150 mortos. Na sua avaliação, o governo falhou ao não dar os alertas na dimensão em que era necessário para que as pessoas deixassem as áreas?

Leite - Os alertas foram dados. Nós emitimos esses alertas, tanto é que em muitas localidades onde houve muito mais mortes no ano passado e não se teve essas mortes novamente. Tudo isso porque foram emitidos os alertas.

Os prefeitos, com suas estruturas de Defesa Civil, removeram muitas pessoas locais de área de risco, evitando muitas mortes.

BBC News Brasil – O que o senhor acha que fez com que essa tragédia chegasse a esse número tão significativo de mortes?

Leite - Ela [tragédia] é muito maior do que qualquer coisa que a gente já tenha visto no passado. As pessoas lidam com a realidade que elas conhecem. Nunca aconteceu, para esta geração ou mesmo para a geração que nos antecedeu, uma situação como essa.

O volume de chuvas foi de excepcionais 700 milímetros em algumas localidades em cinco dias [...] É absurdamente desproporcional em relação a qualquer realidade que já se tenha experienciado no passado. Por mais que a gente emita os alertas, as pessoas convivem com uma noção da realidade a partir do que as pessoas têm de experiência

BBC News Brasil – Na sua avaliação, as pessoas não levaram a sério os alertas?

Leite - Não. Acho que os alertas que foram feitos foram emitidos, mas toda a reação das pessoas, desde a sociedade civil e talvez em alguma medida, do próprio setor público, levam em consideração as piores experiências já tidas e as piores experiências já tidas por todos foram as do Vale do Taquari, no ano passado [...] Pelo menos o que tinha sido trazido até mim, não se projetava com uma antecedência maior a proporção do que que viria a ser.

BBC News Brasil - Desde o início do agravamento dessa crise, houve muitas críticas não apenas ao governo estadual, mas também ao governo federal, indicando que as autoridades, de forma geral, não estariam à altura desse desafio..

Leite - Também podemos falar dos elogios, inclusive eu tenho recebido muitos cumprimentos.

BBC News Brasil – Gostaria de falar, primeiro, sobre as críticas...

Leite - Naturalmente, as críticas fazem muito mais sentido para uma entrevista do que falar dos elogios. Eu tenho absoluta consciência de que eu não sou o dono da verdade, de que nós temos sempre que melhorar em muitas frentes. Faço o melhor que posso com o maior esforço possível, mobilizando uma rede de servidores públicos e da sociedade civil para atender às necessidades da nossa população.

BBC News Brasil - O Estado do Rio Grande do Sul é afetado com alguma frequência por eventos climáticos extremos. Em 2022, por exemplo, vocês tiveram a maior estiagem dos últimos 70 anos e agora uma sequência de eventos e de inundações. No entanto, só no ano passado o seu governo criou um comitê científico pra lidar com adaptação e resiliência, e esse comitê ainda não foi efetivamente implementado. Por que essa demora em chamar a ciência para esse debate?

Leite - Mas isso está sendo implementado. Já houve reunião desse comitê. No ano passado, nós criamos um programa chamado Clima 2050. O Estado tem uma série de ações vinculadas à questão climática [...]

Montamos um gabinete de crise climática e estruturamos um comitê científico. Ele já teve suas primeiras reuniões. Vamos reforçar esse gabinete agora para nos dar suporte nessas ações que virão pela frente.

BBC News Brasil - O senhor é governador desde 2019. A ciência já diz que o planeta vai sofrer com os efeitos das mudanças climáticas há muito mais tempo que isso. Por que ter criado esse comitê apenas agora?

Leite - Se tudo pudesse ser resolvido em pouco tempo, os mandatos não seriam de quatro anos. Seriam de quatro dias. Você largaria o governo fazendo absolutamente tudo na primeira semana e estava tudo resolvido.

Assim como diante de novos desafios, o governo é dinâmico, que a gente identifica que a gente vai acoplar novas ações que possam reforçar a capacidade do governo de dar respostas, porque nós temos. Lembre -e disso também.

É um Estado que tinha a crise fiscal, que teve a pandemia no meio, que teve outros desafios a serem endereçados ao longo desse processo nesses últimos cinco anos.

O Estado ter criado um comitê científico agora de apoio às ações climáticas não significa que ele estivesse inerte antes disso.

BBC News Brasil - A ciência vai ter a palavra final na reconstrução do Rio Grande do Sul?

Leite - Vai ter um papel fundamental. Nós estamos, inclusive, colocando um comitê gestor e na instância superior, um conselho de mobilização da sociedade civil e, em grau equivalente, um comitê científico, que vamos chamar justamente a academia para dar suporte. Até porque, mesmo na ciência há divergências.

A ciência tem também teses e estudos que se aprofundam num tema ou no outro que indicam um determinado caminho, com divergências também entre os cientistas.

Então, esse comitê, é para ser diverso, mas com estrutura técnica, participação da academia, e nós queremos um comitê robusto para poder indicar as ações prioritárias.

BBC News Brasil - Então a ciência não terá a palavra final?

Leite - Existe uma ciência que estuda o comportamento do meio ambiente. Existe a própria ciência política. Qual é a capacidade da sociedade de se adaptar? Qual é a disposição dos seres humanos num grupo social, de apertar um botão e virar completamente a forma como se organiza da noite para o dia? Não tenho dúvida de que nós teremos conflitos a serem arbitrados. Esse é um grande desafio que tem de ser considerado [...]

Não estou falando aqui de grandes empresários. Estou falando de assalariados que vivem, por exemplo, da exploração da economia do carvão. É óbvio, pelos estudos científicos, que essa atividade precisa ser desativada. Mas você não pega e diz para o pessoal: “Acabou! Aqui não se produz mais nada a partir do carvão”. Você tem que fazer uma migração [...]

Se não houver a oferta de um caminho alternativo econômico para comunidades que vivem e que têm a sua renda associada a setores que acabam, infelizmente, contribuindo com as mudanças climáticas... se a gente não ofertar um caminho alternativo, é uma ilusão que a gente simplesmente possa proibir isso.

BBC News Brasil - O seu governo vem sendo criticado por ambientalistas por uma série de mudanças que foram feitas na legislação ambiental estadual. O senhor menciona que não basta dizer isso, que é preciso qualificar que mudanças são essas. Uma delas é uma lei que o senhor sancionou, que permite a construção de barragens em áreas de preservação permanente. A outra é um decreto convertido em lei no seu governo que facilitou o processo de supressão vegetal dos campos sulinos. Por que essas medidas foram tomadas?

Leite - Barragens em áreas de preservação são permitidas pela Lei Federal, seja para abastecimento humano, seja para geração de energia. [A usina hidrelétrica de] Belo Monte é um exemplo. Foi uma barragem feita para geração de energia com um enorme impacto numa área de preservação na região Norte do país.

O que essa legislação estadual fez, a partir de uma proposta de um deputado na Assembleia Legislativa, foi dizer que assim como podem [ser construídas] barragens para geração de energia e consumo humano em áreas de preservação, que seja possível também [fazer] barramentos em áreas de preservação para irrigação para produção de alimentos [...] A lei não libera geral [...]

Esta questão de supressão de determinada vegetação [nativa] também se subordina às legislações federais. Existe um código de florestamento no Brasil e o que nós fizemos no rio Grande do Sul foram compatibilizações em relação à legislação nacional, mas, como eu disse, temos absoluta tranquilidade para se fazerem as discussões.

BBC News Brasil - O governo federal anunciou em um pacote inicialmente de R$ 50 bilhões para reconstrução do Estado Rio Grande do Sul [uma análise da BBC News mostrou que os números foram anunciados de forma 'inflada']. O senhor já deu entrevistas recentes dizendo que não é bem assim. Qual sua avaliação sobre o pacote?

Leite - Meu papel também é esclarecer para que as pessoas não se frustrem em relação a anúncios que são feitos. Não vou classificar sobre o que seja a intenção do governo ou alguma dificuldade de comunicação mais clara sobre esses números. Mas o meu papel também é poder esclarecer a sociedade gaúcha.

Quando eu vejo umas pessoas dizendo olha que o governo federal já está mandando R$ 50 bilhões, eu digo que não é para o Estado. Tem uma boa parte que é a abertura de linhas de crédito [...] Se não, fica num anúncio que depois não se não se perfectibiliza [...] Eu confio que isso será viabilizado e na boa intenção do governo federal.

BBC News Brasil - As águas estão baixando e até o momento já tem mais de 150 mortes. E o senhor teme que o baixar das águas revele mais mortes?

Leite - Nós temos 101 desaparecidos. Muitas não são localizadas, outras são reportadas [como encontradas] de forma que não é possível ainda imaginar o número [de mortes] que isso pode fechar. De qualquer maneira, o número que temos já é impactante. É chocante.

O Rio Grande do Sul está com a alma muito machucada pelo que se passou [...] Quando as águas baixarem, a gente vai conseguir ver melhor o que isso terá acontecido. Inclusive, com [possível] mais vidas [perdidas] que se possa ter. Cada uma delas dói, sem dúvida nenhuma.

BBC News Brasil – Já há relatos de pessoas e empresas cogitando abandonar o Rio Grande do Sul por conta das catástrofes climáticas. O senhor teme que o Rio Grande do Sul se torne um Estado inviável?

Leite - O povo gaúcho é forte. São desafios imensos. E essa é uma das frentes que vamos endereçar no nosso plano de reconstrução do Estado. Será um plano de desenvolvimento que estimule e. incentive as pessoas a apostar nesse estado que naturalmente vai envolver adaptação e resiliência climática [...]

É uma ameaça, de fato, que as pessoas venham a pensar desse jeito, mas eu aposto que nós teremos condição e vamos fazer tudo que tiver ao nosso alcance para que as pessoas apostem nesse estado e possamos ser um grande exemplo para o Brasil e para o mundo de volta por cima, diante de uma situação difícil.

BBC News Brasil – As mudanças climáticas que, segundo os cientistas, estariam por trás de eventos extremos como esse e foram, em sua grande medida, foram geradas por emissões de gases do efeito estufa que foram, em sua maioria, responsabilidade dos países desenvolvidos. Os países desenvolvidos teriam responsabilidade na reconstrução do Rio Grande do Sul?

Leite - Eu entendo que é uma responsabilidade compartilhada para tudo. Na reconstrução, tanto quanto puder haver de ajuda, será importante. Mas a gente sabe que não dá para ficar esperando a ajuda de ninguém [...] Uma coisa é certa: nós teremos que, como seres humanos, como humanidade, trabalhar de forma cooperativa por esse planeta. Está absolutamente claro aos nossos olhos aqui, como está se buscando evidenciar para as principais lideranças do mundo.

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BBC
Leandro Prazeres e João da Mata - Enviados da BBC News Brasil a Porto Alegre
postado em 17/05/2024 22:16 / atualizado em 18/05/2024 17:14