
Gabriel Waldman, 86 anos, tinha apenas 6 anos quando sobreviveu ao Holocausto. Morador de São Paulo, ele ainda guarda lembranças das sensações: principalmente, a fome, o frio e a insônia. "Tudo o que sentimos durante o Holocausto foi ódio puro e destilado. A mágoa profunda, a dor, ficou enterrada em mim por 60 anos", afirmou ao Correio o homem que perdeu o pai e toda a família do lado paterno em campos de concentração. Nascido na Hungria, Gabriel foi salvo pela mãe.
Mas o Holocausto o atingiu duas vezes. Nove anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, ele sofreu com o término de um namoro. Aos prantos, Ingrid rompeu o relacionamento sem se explicar.
Outros dois anos depois, Gabriel descobriu, pela capa de um jornal, que o pai da garota havia sido preso por comandar o campo de extermínio de Treblinka.
Como o senhor define o Holocausto?
O século 20 foi definido como a idade das ideologias. As três principais foram o nazismo, o fascismo e o comunismo. Cada um deles queria salvar a humanidade. A pretensão deles era salvadora. Salvar os homens de todos os males, de todos os percalços que a história tinha oferecido antes disso. Naturalmente, para isso, tinham que escolher seus inimigos.
Aqueles que impediam o surgimento de uma ideologia apropriada. O nazismo talvez tenha sido a pior dessas ideologias. O nazismo era uma das pretensas ideologias salvadoras que, no fim, nos arrastou para um abismo sem fim.
O nazismo ainda representa uma ameaça à humanidade?
A história nunca se repete exatamente como a primeira vez. Não é o nazismo, especificamente, que me preocupa. É o ressurgir do ódio. Esse ódio que, durante a Segunda Guerra Mundial, permitiu ao nazismo fazer os estragos que fez.
Existe o risco de ele ressurgir com outra matriz, outra nomenclatura, com o objetivo de salvar a humanidade; e, de alguma forma, acabar destruindo-a. Vejo os discursos de ódio na deep web, na chamada internet profunda, e isso me assusta muito.
O ódio está levantando sua cabeça. No fim do Holocausto, em 1945, parece que o mundo se envergonhou pelo que fez. Houve o recesso do ódio. Por assim dizer, o ódio se escondeu no fundo de nossas almas. O mundo não aprendeu grande coisa com o Holocausto.
O ódio se escondeu debaixo de uma superfície frágil e, agora, está voltando à tona e nos assombrando. São outras denominações e princípios, mas a mesma finalidade. Tenho muito medo disso. Estou dedicando minha vida a escrever livros e dando palestras, a fim de que o mundo não esqueça o que aconteceu.
De que modo o Holocausto afetou o senhor pessoalmente?
Eu perdi minha família. Somente sobraram minha mãe, que me salvou do Holocausto, e algumas pessoas do lado materno. Do lado do meu pai, não sobrou ninguém. Todos foram assassinados. Eu tive um segundo Holocausto na minha vida. Em 1954, já no Brasil, encontrei uma moça, austríaca.
Eu falava fluentemente alemão, assim como ela. Nós ficamos muito amigos na escola e começamos a namorar. Ela sabia que eu era judeu e eu não sabia muita coisa da família dela.
Afinal, eu namorava com ela, não com a família. Eu tinha uns 15, 16 anos. Depois da escola, nos separamos. Fiz faculdade, fui para a Austrália e, dez anos depois, voltei ao Brasil, onde iniciei um emprego na Volkswagen. Eu era administrador de empresas.
Lá, reencontrei essa mesma moça, à época, divorciada e sem filhos. Eu, solteiro. O que aconteceu? Voltamos a namorar. Nessa altura, éramos adultas, e o pai dela trabalhava também na Volkswagen. Ela me apresentou o pai, que me convidou para a casa deles. Ficamos muito amigos, me receberam carinhosamente. Conversamos amenidas.
Um dia, ela me chamou, entre lágrimas, me disse que nosso namoro não daria certo e que teríamos de nos separar. Disse-me adeus e que eu tivesse uma boa vida. Enquanto ela falava tudo isso, chorava e me acariciava. Pensei: "Não se termina um relacionamento íntimo chorando".
Não pude dissuadi-la e a vida continuou. Ficou uma mágoa enterrada no meu coração. Até que, um dia, dois anos depois, vi no jornal uma enorme fotografia do pai dela. Embaixo, dizia o seguinte: "Preso, no Brasil, um dos maiores criminoos de guerra da Segunda Guerra Mundial.
O pai dela era um comandante do campo de extermínio de Treblinka. O fato é que enterrei esse assunto no meu âmago. O pai dela foi responsável pela morte de uns 700 mil, 800 mil judeus.
Ele me recebeu na casa dele, sabendo, seguramente, que sou judeu. Deixei essa coisa enterrada na minha alma por 50, 60 anos. Até que li uma frase da grande escritora dinamarquesa Isak Dinasen, que dizia assim: "Toda grande dor pode ser suportada se você escreve sobre ela". Decidi escrever o filho Ingrid, a filha do comandante.
Hoje, ele está na quarta edição.