IGREJA CATÓLICA

O milagre do sangue que se liquefaz: entenda a história de São Januário

Fenômeno é celebrado há secúlos em três datas do calendário católico; quando não ocorre é sinal de mau presságio, como no ano em que ocorreu a pandemia da covid-19

Relicário foi erguido às 10h08, na Catedral de Nápoles, pelo arcebispo Dom Domenico Battaglia -  (crédito: Reprodução/Instagram)
Relicário foi erguido às 10h08, na Catedral de Nápoles, pelo arcebispo Dom Domenico Battaglia - (crédito: Reprodução/Instagram)

Às 10h08 desta sexta-feira (19/9), a Catedral de Nápoles testemunhou, mais uma vez, o arcebispo Dom Domenico Battaglia erguer a âmbula que contém o sangue de São Januário (San Gennaro), padroeiro da cidade. Diante de milhares de fiéis, o material, guardado em duas ampolas há mais de 1.700 anos, passou do estado sólido para líquido, repetindo o fenômeno conhecido como milagre da liquefação do sangue.

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O fenômeno repete-se em três datas específicas do calendário católico: no primeiro sábado de maio, em memória da primeira translação dos restos mortais do santo; em 19 de setembro, data da morte e memória litúrgica; e em 16 de dezembro, recordando a erupção do Vesúvio em 1631, que, segundo a tradição, foi contida pela intercessão do santo.

A cada celebração, o relicário é retirado da Capela do Tesouro, dentro da própria Catedral, e apresentado ao povo. As ampolas permanecem seladas em uma teca de prata, que nunca foi aberta. Mesmo assim, o conteúdo, geralmente coagulado e endurecido, adquire aparência de sangue fresco diante da assembleia. 

História de San Gennaro

A devoção remonta aos primeiros séculos do cristianismo. Januário nasceu em Nápoles na segunda metade do século 3 e foi eleito bispo de Benevento, cidade vizinha. Respeitado pela comunidade cristã e até por pagãos, teve papel de liderança durante um período marcado pela perseguição aos seguidores de Jesus.

O episódio que o levou ao martírio está ligado à amizade com Sóssio, diácono de Míseno. Após ser preso por sua fé, Sóssio recebeu a visita de Januário, acompanhado por outros dois clérigos. Todos acabaram condenados. Inicialmente, deveriam ser lançados às feras em espetáculo público, mas temendo revoltas, o governador da Campânia decidiu que seriam decapitados discretamente. 

Assim, por volta do ano 305, Januário foi executado em Pozzuoli, junto a Sóssio, Festo, Desidério, Próculo, Eutíquio e Acúcio, todos venerados como mártires. A tradição narra que uma mulher chamada Eusébia recolheu parte do sangue derramado em duas ampolas, entregues mais tarde ao bispo de Nápoles. Já o corpo de Januário passou por diferentes transladações até chegar à Catedral de Nápoles, em 1497. Sua canonização oficial só veio muito tempo depois, em 1586, pelas mãos do Papa Sisto V, mas a devoção popular o reconhecia como santo desde o século 5.

Milagre

A primeira exposição pública das relíquias ocorreu em 1305, mas foi em 17 de agosto de 1389, em meio a uma grande escassez, que se registrou pela primeira vez o fenômeno da liquefação. Desde então, as duas ampolas passaram a ser guardadas em uma teca de prata, instalada por ordem de Roberto d’Angiò, e preservadas até hoje na Capela do Tesouro da Catedral de Nápoles.

Na devoção popular, quando o sangue não se liquefaz, o fato é interpretado como sinal de tragédias iminentes. Foi assim em dezembro de 2020, quando o fenômeno não ocorreu em plena pandemia de covid-19. Mas, quando a liquefação ocorre, como neste 19 de setembro, renova-se a esperança coletiva de bênção e proteção.

"É um sangue que todos veem ressecado, craquelado, e que diante do povo se torna líquido, como se fosse fresco. O relicário é blindado, ninguém tem acesso ao conteúdo. O povo enxerga nisso um sinal da presença de Deus e da intercessão de São Januário", afirma o padre Rafael Santos, do Santuário Nossa Senhora da Saúde, no Guará.

Ele ainda explica que a igreja reconhece um milagre, quando, de fato, não tem nenhuma hipótese ou invenção humana que explique o ocorrido. "Para reconhecer um milagre é quando todas as outras oportunidades e possibilidades foram sanadas. A própria ciência reconhece isso."

No entanto, o téologo Raylson Araújo confirma este fato, mas explica que o conceito do milagre não se aplica a São Januário. "Existem possíveis explicações para este fenômeno, como a presença de minério no solo vulcânico do Monte Vesúvio, na região de Nápoles, que ajudaria no processo de liquefação do sangue."

Segundo ele, na devoção popular é chamado de milagre, mas no conceito canônico, é um "sinal" ou "prodígio". Ele lembra que a religiosidade cristã, herdando práticas judaicas, sempre valorizou sinais e relíquias, como ossos, roupas, cabelos e sangue de santos considerados exemplos de fé. "O povo sempre foi o primeiro a aclamar alguém como santo, antes mesmo do reconhecimento oficial. A Igreja valoriza porque comunica algo à fé do povo e renova a tradição. É uma forma de presença de Deus, manifestada por meio de símbolos. Não importa se a ciência consegue ou não explicar, o que importa é que o sinal toca o coração dos fiéis", conta.

Do ponto de vista da ciência, o fenômeno é considerado inexplicável. A hematologista Thaís Dourado, da Amplexus Saúde, afirma que, cientificamente, a chance de o sangue coagulado voltar a ser líquido é nula. “O processo de coagulação envolve a formação de uma rede de fibrina e a destruição progressiva das células sanguíneas. Não existe mecanismo que restaure o sangue a seu estado original. O que poderia acontecer, no máximo, é uma reidratação ou diluição, mas nunca a reversão completa.”

 

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postado em 19/09/2025 19:08 / atualizado em 19/09/2025 19:10
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