
Pela primeira vez na história, a Jurisdição Especial para a Paz (JEP), tribunal criado depois do acordo de paz com a guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), em 2016, condenou à pena máxima 12 militares reformados pela execução e pelo desaparecimento de civis apresentados como guerrilheiros mortos em combate. Apesar de ser um acerto de contas com a Justiça colombiana e com o passado, a decisão da JEP foi recebida com reservas por familiares das vítimas.
"Nada neste mundo vai reparar o dano causado, mas o grande trabalho da JEP, ao conseguir demonstrar a prática sistemática, permitiu que os réus ficassem frente a frente e admitissem esses crimes. Desde 2016, sabíamos que a máxima condenação seria de 20 anos. No entanto, também sabíamos que, com suas influências, esses militares receberiam penas mínimas", desabafou ao Correio Jacqueline Castillo, presidente da organização não governamental Madres Falsos Positivos de Colombia (Mafapo) — "falsos positivos" é o termo dado pela sociedade colombiana ao envolvimento de militares nos assassinatos de civis.
Os 12 militares reformados, incluindo dois coronéis, terão que passar os próximos oito anos prestando serviços de reparação às famílias das vítimas. Durante o julgamento, eles confessaram envolvimento em 135 assassinatos e desaparecimentos forçados entre 2002 e 2005, na costa caribenha da Colômbia. No braço direito da colombiana María Doris Tejada Castañeda, 75 anos, uma tatuagem se destaca como um clamor por justiça e uma declaração de amor. Entre as nuvens, as palavras "Mi ángel" ("Meu anjo") sobre o desenho do rosto do filho. Óscar Alexander Morales desapareceu quando tinha 26 anos, em 31 de dezembro de 2007. Tornou-se um "falso positivo".
A mãe de Óscar critica a atuação da JEP. "Ela foi criada para amparar as vítimas, mas acabou por amparar os militares, porque eles praticamente nada pagarão pelos crimes. Não estamos muito contentes, pois os militares não foram obrigados a dizer a verdade. A única coisa com o que estou de acordo é porque a JEP apoiou-me para que a cova coletiva onde estava o corpo do meu filho recebesse proteção e fosse exposta à opinião pública", disse ao Correio. "Todos os corpos foram retirados do local. O cadáver do meu filho me foi entregue no ano passado, depois de 16 anos de buscas."
Na terça-feira, a mesma JEP sentenciou, também de forma inédita, líderes das Farc a trabalhos sociais e outras penas alternativas à prisão pelos sequestros de 21 mil pessoas na Colômbia. Sete ex-guerrilheiros, incluindo o comandante Rodrigo Londoño "Timochenko", receberam a pena máxima. Segundo a agência de notícias France-Presse (AFP), eles serão obrigados a realizar ações em prol da dignidade das vítimas e terão a mobilidade restringida.
Para Andrés Macías Tolosa, professor da Faculdade de Finanças, Governo e Relações Internacionais da Universidad Externado de Colombia, a diferença entre as penas anunciadas para o caso dos "falsos positivos" e dos sequestros pelas Farc mostra-se irônica. "Parece haver um desequilíbrio em matéria de sentença. A responsabilidade e os aportes à verdade são semelhantes, e creio que isso seja o mais valioso de todo o processo, mas as penas não são balanceadas", afirmou à reportagem. No entanto, Tolosa reconhece a primeira condenação das lideranças das Farc como um desdobramento "muito importante". "O processo demorou e sofreu alguns questionamentos, mas trata-se da primeira sentença sob o marco da justiça transicional assinado em 2016, que abriu caminho para o desarmamento do principal grupo guerrilheiro da Colômbia", avaliou.
Tolosa lembrou que, não se pode ignorar o fato de que a sentença foi proferida no âmbito da justiça transicional. "Por isso, não se pode esperar que tenha as mesmas implicações de uma sentença proferida no âmbito de um ordenamento jurídico regular. Pode parecer absurdo que, após tantos anos de sequestros, os membros da liderança não recebam uma punição exemplar, com todo o peso da lei. No entanto, o acordo firmado com eles estabeleceu essa sentença como a punição que poderiam receber, desde que concordassem em contar toda a verdade sobre o que aconteceu durante o conflito armado."
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