Guerra no Leste Europeu

O alto preço da paz imposta na Ucrânia

Três anos e nove meses desde o início da invasão russa, cidadãos ucranianos criticam plano proposto pelo presidente Donald Trump, relatam os piores momentos da guerra contra a Rússia e temem futuro da ex-república soviética

Olena Halushka, cofundadora do Centro Internacional da Vitória Ucraniana, 36 anos, moradora de Kiev   -  (crédito: Fotos: Arquivo pessoal )
Olena Halushka, cofundadora do Centro Internacional da Vitória Ucraniana, 36 anos, moradora de Kiev - (crédito: Fotos: Arquivo pessoal )

Foram 1.368 dias — 195 semanas ou três anos e nove meses — de angústia, medo e bombardeios. A perspectiva do fim da invasão russa não representa um alívio para ucranianos. O plano proposto pelo presidente americano, Donald Trump, e criticado imediatamente por Volodymyr Zelensky, mostra que a paz imposta tem um preço alto demais: a cessão territorial, a redução do exército e a desistência de ambições geopolíticas. Os 28 pontos do acordo preveem a anexação de Donetsk e Luhansk (leste) e da Península da Crimeia pela Rússia e o congelamento de Kherson e Zaporizhzhia na chamada linha de contato, além da renúncia à adesão à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Ontem, Trump reagiu à notícia de que teria usado a proposta para encurralar Zelensky, obrigando-o a aceitar termos que mais parecem vantajosos para o presidente russo, Vladimir Putin, do que para os próprios ucranianos. Ao ser questionado por jornalistas se o seu plano seria uma oferta final para Kiev, o republicano disse que não. "Estamos tentando encerrar isso. De uma forma ou de outra, temos que encerrar isso", declarou. Cidadãos ucranianos consultados pelo Correio opinaram sobre a proposta da Casa Branca, relataram os piores momentos da guerra e avaliaram o futuro da ex-república soviética. Na capital Kiev, a ativista Olena Halushka relatou como escapou da morte em um bombardeio russo e demonstrou ceticismo. Em Ternopil (oeste), onde 26 pessoas morreram em um ataque com míssil, na quarta-feira, a escritora Nadiyka Gerbish e o gerente de marketing Viktor Hnativ disseram desejar a paz, mas alertaram para riscos ao futuro da Ucrânia sob um acordo não vantajoso. Em Kharkiv (leste), a professora Yelyzaveta Rud, 24 anos, lamentou ter perdido muitos amigos e colegas e desabafou: "Essa guerra tem que acabar algum dia". Em Donetsk, o piloto de drones Dimko Zhluktenko lembrou que a Ucrânia gastou milhões de dólares e anos construindo fortificações e linhas de defesa na região do Donbass (leste). "Agora alguém sugere que as abandonemos sem que a Rússia pague o preço mortal por sua agressão?", questionou. 

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Olena Halushka, cofundadora do Centro Internacional da Vitória Ucraniana, 36 anos, moradora de Kiev
Olena Halushka, cofundadora do Centro Internacional da Vitória Ucraniana, 36 anos, moradora de Kiev (foto: Arquivo pessoal )
 

"Não aceito o plano como está construído"

"Um drone russo atacou minha casa. Eu estava sozinha com meu filho; meu marido alistou-se no exército e foi transferido para o leste. Dormimos em um colchão, no corredor, e conseguimos escapar até um abrigo antibombas. Houve duas grandes explosões: uma delas encheu o nosso quarto de cacos de vidro, a outra arrancou as portas das soleiras. A maneira com que o plano de Trump foi formulado não diz respeito à paz, mas à capitulação da Ucrânia. Ele não inclui concessões por parte da Rússia, apenas de meu país, da Europa e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Não consigo imaginar a Ucrânia cedendo territórios em troca de vagas garantias de segurança que podem nunca se concretizar.

Na condição de ucraniana, não aceito o plano como está construído. Espero que o presidente Volodymyr Zelensky se empenhe, em um trabalho extenso com os parceiros europeus, para definir as linhas vermelhas. Tenho certeza de que quaisquer ativos que forem descongelados e devolvidos à Rússia acabarão imediatamente na máquina de guerra russa. Mesmo que o plano seja aprimorado, basicamente, qualquer resultado que não seja a derrota da Rússia significará mais uma fase desta guerra em algum momento, porque os problemas subjacentes ao comportamento imperialista agressivo da Rússia não serão abordados ou resolvidos de forma alguma."

Olena Halushka, 36 anos, cofundadora do Centro Internacional da Vitória Ucraniana, moradora de Kiev

Nadiyka Gerbish, 37 anos, escritora, moradora de Ternopil (oeste)
Nadiyka Gerbish, 37 anos, escritora, moradora de Ternopil (oeste) (foto: Arquivo pessoal )
 

"Eu me recuso a perder a esperança"

"Esses três anos de guerra não têm sido somente desafiadores, mas difíceis e dolorosos em muitos aspectos. Vários de meus amigos e colegas foram mortos, e muitos outros tiveram que ser reassentados. Você nunca espera que tal coisa aconteça com o seu país; pelo menos não durante sua vida, mesmo sabendo da possibilidade por meio dos livros de história. A vida cotidiana aqui também tem sido desafiadora, mesmo estando tão longe da linha de frente. Mas os blecautes, o toque de recolher, as crianças estudando nos porões durante os alertas de ataque aéreo e as dificuldades de locomoção não são nada comparados às vidas perdidas diariamente nesta guerra, tanto militares quanto civis.

Nós ansiamos pela paz mais do que qualquer outra pessoa, disso não há dúvida. Talvez, essa não seja uma opinião popular, mas perder território não é crucial — a terra nunca vale mais do que a vida das pessoas. O problema é que ainda existem dezenas de milhares de ucranianos vivendo lá, incluindo crianças. E abrir mão desse território os forçará a viver sob ocupação. Rezo para que nossos aliados em Washington tenham sabedoria e discernimento e que esta guerra termine em termos justos.

Eu me recuso a perder a esperança. A esperança tem essa qualidade excepcional, sabe? Mesmo nos momentos mais sombrios, ela permanece de alguma forma indestrutível, especialmente se você é um crente. Portanto, espero paz, restauração e o desenvolvimento contínuo de uma democracia estável e sustentável, com tribunais justos e aliados fortes. Como mãe, rezo para que meus filhos vivam no país que amam e onde se sintam seguros."

Nadiyka Gerbish, 37 anos, escritora, moradora de Ternopil (oeste)

Viktor Hnativ, 26 anos, gerente de marketing, morador de Ternopil
Viktor Hnativ, 26 anos, gerente de marketing, morador de Ternopil (foto: Arquivo pessoal )

"Nós ainda não perdemos a guerra" 

"Com base na informação divulgada pela mídia, caso seja verdadeira, acho que esse acordo de 28 pontos seria terrível. Não perdemos a guerra. Ainda temos metade de nossas capacidades militares. Não podemos perder o nosso território e nem sofrer restrições de nossas unidades do exército. O fato de sermos obrigados a ficar de fora da Otan seria um desastre total. Somos capazes de travar uma guerra de alguns anos e temos boas chances de vencer a Rússia. A indústria russa enfrenta uma situação horrível, e eles também estão com problemas na economia. 

Não vejo um futuro da Ucrânia se Zelensky ou o Parlamento da Ucrânia aceitar esse plano. Acho que ele apenas traria uma pausa antes de uma guerra ainda maior. O primeiro ano de invasão em larga escala foi pior. A questão é que, na verdade, vivemos em guerra desde 2014. No começo da invasão russa, não sabíamos o que esperar. Eu trabalhava na administração militar de Lviv e, durante as primeiras semanas, estava de plantão durante 24 horas e dormia no chão.

Quando os russos começaram a atingir a nossa rede elétrica, também foi muito ruim: ficamos sem aquecimento e sem luz no inverno. Mas o pior é quando você é obrigado a ir ao funeral de um conhecido ou a sepultar o seu melhor amigo. O momento em que você escuta a notícia da morte de alguém que você ama é, provavelmente, o pior."

Viktor Hnativ, 26 anos, gerente de marketing, morador de Ternopil 

Yelyzaveta Rud, 24 anos, professora, moradora de Kharkiv (leste)
Yelyzaveta Rud, 24 anos, professora, moradora de Kharkiv (leste) (foto: Arquivo pessoal )

"A Rússia tornou-se símbolo de morte"

"Nas primeiras semanas da invasão, eu não pude acreditar. Esperava que a guerra duraria apenas duas ou três semanas. A ideia de uma guerra em larga escala no século 21 parecia irreal. Então, veio a primeira perda: em 9 de março de 2022, o Exército russo matou meus colegas. Depois disso, foi tragédia após tragédia — Bucha, Irpin, Kharin, casas destruídas repletas de famílias. Então, ataques à eletricidade, aos gasodutos, hospitais e centros comerciais. A Rússia tornou-se símbolo de catástrofe, destruição e morte. Esses têm sido os anos mais difíceis da minha vida. 

O plano de Trump não é perfeito para o povo ucraniano. Infelizmente, nada sobre essa situação é simples. Mas a guerra, que continua, é muito pior. Perdi muitos de meus amigos por causa dela, e toda a morte é impossível de ser aceita. Essa guerra tem que acabar algum dia. Muitas pessoas apenas querem a paz e a  chance de viverem normalmente. Mas não creio que Putin e seu círculo estejam prontos para parar. Recentemente, mataram pessoas em Ternopil enquanto elas dormiam.

O nosso presidente talvez tenha que tomar as decisões mais difíceis da nossa história. Apesar de tudo, eu o apoio. Ele é nosso líder legítimo, e precisamos de unidade agora. O futuro será difícil para todos nós. Nossa economia está se enfraquecendo, estamos perdendo algumas de nossas melhores pessoas, cidades inteiras estão arruinadas. Só pode esperar que o mundo continue nos apoiando." 

Yelyzaveta Rud, 24 anos, professora, moradora de Kharkiv (leste)

A avó de Amelia Grzesko, sete anos, morta com a mãe, Oksana, em um ataque a Ternopil,  reza diante dos túmulos
A avó de Amelia Grzesko, sete anos, morta com a mãe, Oksana, em um ataque a Ternopil, reza diante dos túmulos (foto: Yuriy Dyachyshyn/AFP)

"A verdadeira segurança está ausente"

"Para ser honesto, é um insulto à paz como conceito chamar isso de plano de paz. Não me surpreendem as exigências — é exatamente o que a Rússia apresentou em 2022 durante as negociações na Turquia. Reduzir nossas forças armadas, ceder nosso território e nosso povo e não receber nenhuma garantia real de segurança em troca. A verdadeira segurança está completamente ausente. Existe apenas uma garantia de segurança verdadeira para a Ucrânia e para a Europa: nossas Forças Armadas, as pessoas que resistem dia e noite. Até agora, elas são as únicas que tiveram a coragem de deter essa horda russa.

Dimko Zhluktenko, 24 anos, piloto de drones das Forças Armadas da Ucrânia, morador de Donetsk
Dimko Zhluktenko, 24 anos, piloto de drones das Forças Armadas da Ucrânia, morador de Donetsk (foto: Arquivo pessoal)

Minha reação imediata aos pontos do plano foi simples: inaceitável, irrealista e perigoso —não apenas para a Ucrânia, mas para a Europa como um todo. Se a Ucrânia aceitasse esse plano, isso não levaria à paz. Levaria a uma pausa — uma pausa que a Rússia usaria para se reagrupar, rearmar e atacar novamente com ainda mais força. Imagine só: gastamos milhões e anos construindo fortificações e linhas de defesa na região de Donetsk. E agora alguém sugere que as abandonemos sem que a Rússia pague o preço mortal por sua agressão?

Nós recuamos, eles avançam. Dizem-nos para reduzir nossas forças armadas enquanto a Rússia aumenta as suas para quase 2 milhões de soldados. Isso não garante a segurança de nossas famílias nem o nosso futuro. Simplesmente prepara o campo de batalha para o próximo ataque, ainda maior.

Foram anos muito interessantes da minha vida. Fiz a transição de funções civis na área de TI para pilotar drones sobre as forças russas, eliminando os invasores do céu. Isso me transformou como pessoa e me fez perceber o quão frágil e preciosa é a nossa liberdade."

Dimko Zhluktenko, 24 anos, piloto de drones das Forças Armadas da Ucrânia, morador de Donetsk

  • Nadiyka Gerbish, 37 anos, escritora, moradora de Ternopil (oeste)
    Nadiyka Gerbish, 37 anos, escritora, moradora de Ternopil (oeste) Foto: Arquivo pessoal
  • A avó de Amelia Grzesko, sete anos, morta com a mãe, Oksana, em um ataque a Ternopil,  reza diante dos túmulos
    A avó de Amelia Grzesko, sete anos, morta com a mãe, Oksana, em um ataque a Ternopil, reza diante dos túmulos Foto: Yuriy Dyachyshyn/AFP
  • Memorial improvisado perto de prédio destruído por um bombardeio russo, em Ternopil, no oeste
    Memorial improvisado perto de prédio destruído por um bombardeio russo, em Ternopil Foto: Yuriy Dyachyshyn/AFP
  • Yelyzaveta Rud, 24 anos, professora, moradora de Kharkiv (leste)
    Yelyzaveta Rud, 24 anos, professora, moradora de Kharkiv (leste) Foto: Arquivo pessoal
  • Dimko Zhluktenko, 24 anos, piloto de drones das Forças Armadas da Ucrânia, morador de Donetsk
    Dimko Zhluktenko, 24 anos, piloto de drones das Forças Armadas da Ucrânia, morador de Donetsk Foto: Arquivo pessoal
  • Viktor Hnativ, 26 anos, gerente de marketing, morador de Ternopil
    Viktor Hnativ, 26 anos, gerente de marketing, morador de Ternopil Foto: Arquivo pessoal
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postado em 23/11/2025 05:50
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