CULTURA

Artigo: "O Calaf fecha as portas, mas a cultura brasiliense resiste"

Priscila Calaf, ex-dona do local, conta detalhes da história de um dos pontos culturais mais tradicionais da cidade

Correio Braziliense
postado em 23/02/2022 17:28 / atualizado em 23/02/2022 17:28
 (crédito: Desfrute Cultural/Divulgação)
(crédito: Desfrute Cultural/Divulgação)

Por Priscila Calaf, antropóloga e (ex) dona de boteco

Anunciar o encerramento das atividades do Outro Calaf, depois de 32 anos de funcionamento, foi uma das decisões mais difíceis de nossas vidas. Não só pelas dezenas de empregos diretos e indiretos que serão perdidos, ou das dívidas que ainda se acumularão, mas também porque é mais um palco do Distrito Federal que se cala, mais um espaço de resistência cultural que deixará de existir na Capital de todos os brasileiros e brasileiras. Sucumbimos, afinal.

Quem esteve nas trincheiras ao nosso lado durante todo esse tempo importa mais do que a própria guerra. Uma equipe de colaboradores maravilhosos e profissionais. Pessoas que estão conosco desde a abertura do bar, outros que se juntaram depois, dentre eles o iluminado Odilon Berlink, que foi brutalmente assassinado em 2021, em um crime ainda sem solução. Dezenas de artistas, produtoras, cantoras, DJs, jovens, adultos, pessoas da terceira idade. Gente que pensa e vive a gastronomia e a cultura de Brasília.

O Bar do Calaf surgiu de um sonho do meu pai, Venceslau Calaf. Em 1990, ele e minha mãe abriram uma lojinha de 40 m² no Setor Bancário Sul que funcionava como restaurante (fazia sucesso o “Tia Zélia”, um PF de primeira qualidade com o nome da ministra da Economia responsável pelo confisco das poupanças na época), lanchonete (o bolo de banana da minha mãe é lembrado até hoje pelos clientes mais antigos) e boteco para uma cerveja bem gelada depois do expediente dos trabalhadores daquela região.

No início dos anos 2000, alguns músicos da cidade (o saudoso Wilson Kunka, principalmente) nos convenceram a abrir o bar aos sábados para fazer um Chorinho com Samba. Os bares das entrequadras já sofriam com a sufocante Lei do Silêncio, e a ideia era fazer do deserto de prédios do Setor Bancário aos fins de semana um nascedouro de música. Deu certo!

Pelos palcos e pelo chão do Calaf (que mudou de prédio em 2013 e passou a se chamar Outro Calaf) passaram gerações de artistas iniciantes e veteranas. Os sambas de sábado, as apresentações do Coisa Nossa na sexta e as noites de segunda com a festa Criolina marcaram toda uma geração de brasilienses. A roda de samba do grupo 7 na Roda às terças é um momento de comunhão entre os frequentadores. Foram marcantes as Mulheres de Samba, o funk de quinta, as diversas rodas do Samba do Peleja, as edições do Samba Urgente em que colocamos 8 mil pessoas nas ruas. Foram muitos artistas e musicistas que passaram pelo nosso palco.

Além de grandes nomes da música nacional como Nelson Sargento, Otto, Karina Buhr, Toninho Geraes, João Cavalcante, Gabi Amarantos,Banda Eddie,Baiana System, Karol Conká, Anelis Assumpção, Omulu,Tati Quebra Barraco,MC Rebeca,MC Carol, Letrux, entre tantos outros.

O Calaf sempre foi muito mais que um ponto de encontro, o espaço cultural era certeza de alegria, comida boa, debates políticos e cerveja gelada.

Desde o início da pandemia da Covid-19, em março de 2020, lutamos para manter o Calaf aberto. Nos primeiros seis meses, mantivemos todos os nossos funcionários em casa, com salário integral. Depois, aos poucos, fomos reabrindo, sempre respeitando os decretos estabelecidos pelo Estado, as medidas de saúde e de segurançaRR. Fomos uma das primeiras casas em Brasília a exigir a apresentação da comprovação de vacinação para o acesso ao nosso estabelecimento.

Ao longo deste período de reabertura da Casa, recebemos visitas quase diárias da fiscalização, que não tem parâmetros nítidos ou legalmente determinados, o que dificultou enormemente nosso funcionamento. Diante da total ausência de políticas públicas para o setor cultural e da falta incentivos fiscais e diálogo com os empresários do ramo fomos acumulando dívidas e cada vez mais a situação ficava preocupante. A pá de cal foi a última leva de decisões do Governo do Distrito Federal que criminalizou os músicos e quem vive de cultura em Brasília, com a absurda proibição da cobrança de ingressos. A resolução, inconsequente não faz o menor sentido, não teve uma explicação cabível e nos mostrou, definitivamente, que não tínhamos mais como resistir ao Estado que teima em promover o desmonte da cultura e da alegria dos brasilienses.

Estamos sendo inundados por mensagens de amor e de apoio. Pessoas lembrando dos bons momentos que viveram no Calaf, frequentadores e artistas que estão se organizando e pensando ações para ajudar no que for necessário neste momento tão difícil. Nós só temos a agradecer. Resistência, luta e celebração: é o que fomos e o que a cultura do Distrito Federal continuará sendo. O Calaf fecha as portas, mas a cultura segue, mais viva do que nunca. Este movimento cultural continuará construindo um futuro em que será possível voltar a sonhar. Eles passarão, nós passarinho.

Sucumbimos em face da pandemia do Coronavírus, da marcha de um governo federal genocida que segue fazendo troça diante da morte de mais de 600 mil brasileiros, da ausência de políticas públicas para o setor cultural e da criminalização de quem vive da arte e da cultura no Brasil e no Distrito Federal
As portas do Calaf estarão abertas até 13 de março e as lembranças ficarão para sempre na memória de todas e todos que passaram por lá em algum momento de suas vidas. Nas palavras de Darcy Ribeiro, “os fracassos são as minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.

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